quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"O Princípio de Arquimedes"

............................................................
A relatividade das aparências




Lionel Fischer



Toda escola de natação tem por objetivo óbvio ensinar os alunos a nadar. Mas tal objetivo, para se consumar plenamente, pressupõe  um caminho, posto que a confiança só advém após a superação do medo inicial. Algumas crianças são mais atiradas, e com elas o processo é mais simples. Mas outras demandam, por infinitas razões, uma atenção especial. E em que consiste essa atenção especial?  Mais paciência por parte dos professores? Talvez uma relação mais próxima e carinhosa, capaz de relaxar o aluno a ponto de fazê-lo, finalmente, acreditar que pode abandonar as boinhas protetoras? Enfim...são muitas as possibilidades.

No presente caso, um dos professores da escola de natação infantil dá um abraço e um beijo em um aluno, em princípio visando apenas encorajá-lo. Mas o fato é testemunhado por uma garotinha, que relata o ocorrido à direção da escola. E logo vários pais ficam sabendo, inclusive o do aluno em questão. A partir daí, tudo se converte em uma espécie de tribunal: teria ou não ocorrido assédio por parte do professor?

De autoria do catalão Josep Maria Miró, "O Princípio de Arquimedes", após cumprir temporada no Sesc Tijuca, está novamente em cartaz, agora no Centro Cultural dos Correios. Terceira montagem da Lunática Companhia de Teatro, a obra tem direção e tradução assinadas por Daniel Dias da Silva, estando o elenco formado por Helena Varvaqui (atriz convidada), Cirillo Luna, Gustavo Wabner e Sávio Moll.

Antes de mais nada, talvez seja interessante entender o porquê do título da peça. Matemático, físico, engenheiro, inventor e astrônomo grego, Arquimedes de Siracusa (287 a.c / 212 a.C) formulou o seguinte princípio, conhecido como "Princípio de Arquimedes": 

Todo corpo mergulhado total ou parcialmente num fluido (líquido ou gás) recebe por parte deste fluido uma força vertical, de baixo para cima (conhecida como Força de Empuxo), de intensidade igual ao peso do volume de fluido deslocado pelo corpo.

Isto significa, por exemplo, que se não consigo segurar no colo alguém que pese 80 quilos, uma vez dentro de uma piscina, em cujo fundo meus pés estejam plantados, eu conseguirei fazê-lo. A pessoa continua com seus 80 quilos, mas parecerá muito mais leve, graças ao mencionado Princípio de Arquimedes. E deste aquático exemplo talvez se possa concluir que o autor objetivou discutir a relatividade das aparências. 

Ou seja: o professor em questão pode efetivamente ter abusado do aluno, como também pode ter sido apenas mais carinhoso com ele do que com outros. E aí? Como se chegar a uma conclusão justa sobre o ocorrido, sobretudo se levarmos em conta que esse professor, além de experiente, jamais sofreu uma acusação como essa? É claro que seu ilibado passado não tem o poder de absolvê-lo a priori, pois isso equivaleria a não condenar alguém por um determinado delito pelo simples fato de não tê-lo cometido antes. 

E cabe também mencionar uma outra passagem, que nada tem a ver com o aluno, mas que reforça minha crença de que o autor efetivamente centrou seu foco na relatividade das aparências. Em dado momento, e já em um estado de completa exasperação, o professor acusado tira seu roupão e fica completamente nu diante da diretora. Pois bem: e se entrasse alguém nesse exato instante? Será que a diretora conseguiria provar que foi surpreendida pela inusitada atitude do professor ou seria acusada de tê-la provocado?
Enfim...prossigamos.

Não consegui entender as razões que levaram o autor a criar uma estrutura narrativa que, a todo momento, é interrompida e retomada do ponto onde se deu a interrupção, para então serem acrescidos mais alguns dados. Em meu entendimento, isso só contribui para ralentar a evolução da trama e a materialização dos conflitos. No que se refere à contextualização da peça, nada mais oportuno do que se discutir, nos dias atuais, a questão do assédio, em suas aparentemente infinitas e abjetas vertentes.

Outra questão que me soou estranha diz respeito ao fato de toda a peça se passar no vestiário masculino da escola. A meu ver, se a diretora de uma escola, seja ela de natação ou não, recebe uma denúncia contra um professor, a primeira e única providência a tomar seria a de chamá-lo à sua sala para prestar os devidos esclarecimentos, e não, como acontece na peça, ir diversas vezes ao vestiário quase que suplicando ao acusado que admita sua culpa ou demonstre sua inocência - se pensarmos em termos estritamente pedagógicos, e levando-se em conta que já existe uma repercussão negativa entre os pais dos alunos, o normal seria a diretora suspender temporariamente o tal professor até o total esclarecimento do fato.  

Seja como for, tudo se passa no vestiário e é nele que os embates são travados. E o tal vestiário é eventualmente modificado, como a sugerir que toda questão pode ser observada de variados pontos de vista - não sei se tais alterações são indicadas pelo autor ou fruto de uma opção do diretor. Seja como for, em meu entendimento isso não altera nada, ou seja, a validade das discussões propostas não se torna mais ou menos relevante se as extremidades do cenário são várias vezes invertidas.

Ressalvas feitas, é inegável que o texto de Josep Maria Miró levanta discussões pertinentes, exibe diálogos fluentes e contém bons personagens. E a encenação de Daniel Dias da Silva merece ser elogiada pela eficiência de suas marcações e sobretudo por sua precisão no tocante aos tempos rítmicos - em que pese as  desnecessárias idas e voltas no tempo, é inegável que o encenador consegue fazer com que a tensão aumente progressivamente.

Com relação ao elenco, Helena Varvaqui encarna Ana, a diretora da escola, personagem um tanto ingrata, posto que quase sempre aprisionada em uma mesma e suplicante chave, como já mencionado. A exceção fica por conta do emocionante momento em que recorda a perda do filho de 16 anos, que provavelmente se suicidou - nessa breve passagem, Helena Varvaqui demonstra as razões que me levam a considerá-la uma das melhores atrizes do país. Na pele de Rubens, o professor acusado, Cirillo Luna exibe atuação segura e convincente, valorizando com a mesma eficiência tanto os momentos de indignação do personagem quanto aqueles em que ele se mostra perplexo e fragilizado. 

Gustavo Wabner vive Heitor, o outro professor de natação, cuja missão básica consiste em alertar Rubens para sutilezas por ele não percebidas, ou por ele desprezadas, relativas ao que está acontecendo e sobretudo ao que pode vir a acontecer. Dentro das possibilidades do papel, o ator exibe seguro e digno desempenho. Vivendo David, o pai do garoto supostamente molestado, Sávio Moll impõe ao personagem uma indignação e revolta um tanto comedidas, bem mais cerebrais do que emotivas, quando me parece que um pai, em tal contexto, deveria exigir explicações com uma urgência semelhante à de alguém capaz de ir às últimas conseqüências na defesa de um filho.

Na equipe técnica, Daniel Dias da Silva responde por excelente tradução, sendo eficientes as contribuições de Cláudio Bittencourt (cenografia), Victor Guedes (figurinos), Walace Furtado e Vilmar Olos (iluminação) e Sueli Guerra (direção de movimento).

O PRINCÍPIO DE ARQUIMEDES - Texto de Josep Maria Miró. Direção de Daniel Dias da Silva. Com Helena Varvaqui, Cirillo Luna, Gustavo Wabner e Sávio Moll. Centro Cultural dos Correios. Quinta a domingo, 19h. 



    









Nenhum comentário:

Postar um comentário