sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Dançando no escuro"

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Bela montagem de um texto trágico



Lionel Fischer



"A história se passa em 1964, nos Estados Unidos. Selma Jezková é uma imigrante tcheca que se muda para os EUA com seu filho Gene, um garoto de doze anos. Ela tem uma doença hereditária degenerativa que a faz perder a visão, algo que também vai acontecer com seu filho. Ao saber que nos EUA existem médicos que podem operar Gene, ela imigra para o país. Selma aluga um trailer na propriedade de Bill e sua esposa Linda, seus vizinhos, onde vive humildemente. Trabalha exaustivamente em uma fábrica com sua melhor amiga Carmen e guarda tudo o que ganha para a cirurgia do filho. Mas quando Bill se vê em dificuldades financeiras, rouba o dinheiro que Selma tinha economizado duramente. O roubo é o ponto de partida para trágicos acontecimentos".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Dançando no escuro", adaptação teatral de Patrick Ellsworth do filme homônimo de Lars von Trier. Convertido em musical, ainda que um tanto atípico (como explicitarei mais adiante), o texto chega à cena com direção de Dani Barros, estando o elenco formado por Juliana Bodini, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Gouvea, Marino Rocha e Suzana Nascimento.

Bastante fiel ao filme que lhe deu origem, a peça gira em torno da comovente determinação da protagonista no sentido de juntar dinheiro suficiente para a operação do filho, inclusive dispondo-se a correr riscos físicos na fábrica em que trabalha - Selma decide trabalhar em dois turnos, sendo o da noite o mais perigoso, já que a iluminação precária potencializa o perigo para alguém que possui acentuada deficiência visual. 

Em contrapartida, sua paixão pelos musicais norte-americanos, em especial "A noviça rebelde", até certo ponto suaviza um cotidiano marcado pela monotonia e aridez, e é através do lúdico que Selma consegue viver breves momentos de intensa alegria. No entanto, tudo sofre brutal reviravolta a partir do momento em que Bill confessa ter se apossado do dinheiro e, como explicitado no parágrafo inicial, daí em diante o trágico predomina - não entrarei em maiores detalhes sobre os fatos subsequentes pois isto privaria o leitor que desconhece a trama de ser atravessado pelo impacto da mesma.

Como já dito, o adaptador optou por conferir ao enredo conotações de um musical. Tal opção, em meu entendimento, não se materializa, pois além de serem poucas as canções, estas não são determinantes para a evolução da trama. Posso estar enganado, naturalmente, mas acredito que o presente espetáculo exiba passagens em que se dança e canta, mas não exatamente a estrutura típica de um musical. Ainda assim, é inegável a qualidade das músicas compostas por Björk, muito bem traduzidas por Marcelo Frankel e Juliana Bodini, e cuja complexidade e densidade estabelecem um expressivo contraponto com a leveza e luminosidade de "A noviça rebelde".

Texto denso, amargo e de uma tragicidade que chega a ser exasperante, "Dançando no escuro" marca a estreia como diretora da excelente atriz Dani Barros. E tal estreia evidencia muitos méritos, tais como o rigor formal, a expressividade da maior parte das marcações, a criativa utilização sonora dos aparatos da fábrica (manipulados pelos atores) e sobretudo a capacidade da encenadora de gerar fortes emoções sem jamais enveredar pela pieguice. 

No entanto, me permito duas ressalvas. A primeira diz respeito à interrupção da montagem, por 30 segundos, seguida de uma voz em off que protesta contra o não pagamento do fomento pela Prefeitura. Este não pagamento configura, sem a menor dúvida, uma execrável abjeção. Mas tal protesto poderia ter sido feito quando o espetáculo terminasse e não durante o mesmo. A outra ressalva diz respeito à utilização de um boneco como personagem; o dito boneco é expressivo, bem manipulado, mas me pareceu um elemento estranho à linguagem do espetáculo.

Com relação ao elenco, Juliane Bodine exibe performance impecável na pele de Selma. Possuidora de belíssima voz, forte presença cênica, grande expressividade corporal e notável capacidade de entrega, a atriz materializa uma das melhores performances da atual temporada. Exceção feita a uns poucos momentos em que objetiva extrair desnecessário humor no primeiro ato na pele de Brenda Young, já no segundo Suzana Nascimento está irrepreensível ao encarnar a sentinela cúmplice, amorosa e ardorosa defensora dos direitos de Selma. Quanto aos demais intérpretes, todos exibem seguras e sensíveis atuações.

Na equipe técnica, há um casamento perfeito entre a cenografia de Mina Quental e os figurinos de Carol Lobato. A primeira nos remete, em alguma medida, a dos filmes "Metrópolis" e "Tempos Modernos", pois sugere que o indivíduo é anulado pelos mecanismos de produção - mas não se trata, em absoluto, de uma cópia, e sim de uma referência. E os figurinos monocromáticos reforçam a ideia de que os trabalhadores das fábricas se resumem a peças que podem ser substituídas a qualquer momento, já que a singularidade de cada um não tem a menor importância. Também de excelente nível são a tradução de Elidia Novaes, a direção e arranjos musicais de Marcelo Alonso Neves, a iluminação de Felicio Mafra, a preparação vocal de Mirna Rubin, a direção de movimento e coreografias de Denise Stutz e o visagismo de Marcio Mello. Cumpre também destacar a excelência dos músicos Vanderson Pereira (multi tecladista), Johnny Capler (baterista), Allan Bass (baixista) e Dilson Nascimento (multi tecladista).

DANÇANDO NO ESCURO - Musical baseado no filme de Lars von Trier. Adaptação teatral de Patrick Ellsworth. Direção de Dani Barros. Com Juliane Bodine, Cyria Coentro, Luis Antonio Fortes, Andreas Gatto, Greg Blanzat, Julia Gorman, Lucas Govea, Marino Rocha e Suzana nascimento. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a sábado, 19h. Domingo, 18h.



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