quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"A cozinha"

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Segredo revelado gera explosivos conflitos



Lionel Fischer



Estamos todos, atores e espectadores (20 por sessão), em uma cozinha real, situada em uma casa real. Sentada à mesa, Letícia observa as idas e vindas de Miguel, que veste um avental. Tudo leva a crer que ele almeja ultimar os preparativos para uma refeição. Finalmente, começa a descascar uma cebola. O silêncio é rompido, e ficamos sabendo que Letícia e Miguel são namorados, que o namoro não vai bem e que Miguel aguarda a chegada de Rodrigo, seu amigo de infância, que finalmente surge com a namorada Carla, que já se considera meio casada. 

Miguel desconhecia esse namoro, da mesma forma que Rodrigo ignorava a relação do amigo. A partir daí, conversas banais são inicialmente trocadas entre os quatro. No entanto, o clima vai aos poucos se tornando menos formal, o que leva Rodrigo a empreender inúmeras tentativas de ir embora. Mas jamais o deixam concretizar seu desejo, cuja motivação, até este momento, não fica clara. A tensão aumenta progressivamente e acaba por enveredar para um contexto de extrema violência, após vir à tona uma surpreendente revelação.    

Eis, em resumo, o enredo de "A cozinha", de autoria de Felipe Haiut, em cartaz no Cazebre, em Humaitá. Gunnar Borges assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Felipe Haiut (Miguel), Julia Stockler (Letícia), Saulo Arcoverde (Rodrigo) e Catharina Caiado (Carla).

Em termos de contexto e estrutura, "A cozinha" exibe algum parentesco com muitas obras, sendo a mais notável "Quem tem medo de Virgínia Woolf?", de Edward Albee, que virou filme de enorme sucesso com direção de Mike Nichols e elenco formado por Elizabeth Taylor, Richard Burtom, George Segal e Sandy Danis. 

Embora na peça de Albee os personagens sejam mais velhos, estejam embriagados e os principais conflitos sejam explicitados a partir do momento em que um dos personagens propõe uma espécie de "jogo da verdade", com o intuito de induzir os demais a revelarem detalhes de natureza íntima, aqui não é o excesso de bebida que deflagra nada, mas a insistência de Miguel em relembrar sua amizade de infância com Rodrigo. Mas nada sugere que as relações entre os quatro personagens irá descambar para um contexto de extrema violência, como já mencionado.

Neste sentido, o texto de Felipe Haiut exibe muitos méritos, pois a tensão vai sendo progressivamente acentuada sem jamais parecer  gratuita. Afora isto, cabe registrar que o autor criou personagens muito bem estruturados, diálogos fluentes e abordou, com extrema pertinência e sensibilidade, algumas questões relativas aos afetos e à necessidade que às vezes sentimos de ocultá-los, ainda que visceralmente verdadeiros.  

Com relação ao espetáculo, Gunnar Borges impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, para tanto valendo-se de marcações criativas e expressivas, e explorando com sensibilidade a proximidade dos atores com a plateia, não raro gerando uma sensação propositadamente sufocante e algo claustrofóbica. Em certa medida, tudo acontece como se os conflitos ficcionais acabassem sendo também os nossos - e não deixam de ser, ao menos alguns.

No tocante ao elenco, Felipe Haiut, Catharina Caiado, Julia Stockler e Saulo Arcoverde exibem performances irretocáveis, cabendo registrar a notável capacidade de entrega do conjunto e a ótima contracena que evidenciam, fato só passível de acontecer quanto a confiança é mútua e todos acreditam totalmente na validade do projeto em que estão inseridos. A todos, portanto, parabenizo com o mesmo entusiasmo. 

Com relação à equipe técnica, suponho que os figurinos sejam de autoria dos integrantes do projeto, estando em perfeita sintonia com as personalidades retratadas. Gabriel Prieto ilumina a cena com discrição e sensibilidade. 

A COZINHA - Texto de Felipe Haiut. Direção de Gunnar Borges. Com Felipe Haiut, Catharina Caiado, Julia Stockler e Saulo Arcoverde. Em cartaz no Cazebre. Domingo e segundas, 20h.




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