quarta-feira, 19 de julho de 2017

“A CIÊNCIA DAS SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS: DIÁLOGO ENTRE PATAFÍSICA E TEATRALIDADE”

Alfred Jarry (1873-1907) é uma das personalidades mais curiosas e importantes da história do teatro universal. Encarnação máxima do anarquismo individualista que permeia todo simbolismo, passados cem anos de sua morte, as provocações que sua obra apresenta, não foram ainda totalmente processadas no quadro da contemporaneidade.

Em Setembro de 1896, publicou “Da Inutilidade do Teatro no Teatro”, no Mercure de France, denunciando, os recursos estilísticos “horríveis e incompreensíveis[1] do teatro acadêmico, advogando uma nova lógica estética orientada pela economia de expressão a par do exercício intrincado da síntese e com a recusa terminante da utilização do telão pintado assim como o desprezo pelos efeitos de trompe-l’oeil, que “iludem aquele que vê grosseiramente, ou seja, que não vê”[2]

Em dezembro do mesmo ano, estreou  “Ubu-Rei”, sua obra mais reconhecida, no Théâtre de l’Œuvre, em Paris. A peça, metáfora da opressão e do pai dominador, compõe uma série de textos, juntamente com “Ubu no Morro”, “Ubu Cornudo” e “Ubu Acorrentado”, além dos “Almanaques do Pai Ubu”. Este personagem emblemático é a caricatura selvagem do burguês estúpido e egoísta visto através do cínico olhar de seu autor. Ubu faz-se a si próprio rei da Polônia, mata e tortura a todos e é finalmente banido do país. Ele é vulgar e brutal, um tipo monstruoso que pareceu burlescamente exagerado em 1896, mas que foi profeticamente ultrapassado pela realidade, em diversos momentos históricos ao longo do séc. XX.

Há uma divergência entre biógrafos e estudiosos, sobre a verdadeira autoria dramatúrgica de “Ubu-Rei”: se foi escrito integralmente pelos Irmãos Morin, colegas de colégio de Jarry, ou se houve uma criação coletiva entre os três. A origem da peça surgiu a partir de uma brincadeira juvenil com Hébert, um grotesco professor de Física que foi representado jocosamente e serviu como fonte de inspiração para Pai Ubu, assim como a satirização de “Macbeth” de William Shakespeare,.

L´enfant terrible, como era conhecido no meio literário e teatral parisiense, andava pelas ruas com as mãos, braços e rosto pintados na cor verde. Compareceu, certa vez, na platéia de um teatro com a gravata desenhada no peito da camisa. Tinha também estranhos hábitos de andar armado. Chegava a percorrer Paris de bicicleta, outro de seus fetiches, equipado com dois revólveres e uma carabina em punho. Morou em um quarto minúsculo com um pé direito tão baixo que não era possível ficar ereto no cômodo, só agachado. Expressava-se sempre com um tom de voz monocórdico, escandindo em um linguajar pseudo-aristocrático adotando a teatralidade criada para “Ubu-Rei”. De um alcoolismo insaciável, teve final precoce aos 34 anos, morto, na miséria, de meningite tuberculosa.

Ao converter-se em personagem de si mesmo, encarnando no cotidiano Pai Ubu, representou singularmente, um novo modo de relação entre obra de arte e vida, símbolo e realidade, criação e delírio, promovendo um sistemático diálogo entre estes níveis. Antecipou, deste modo, posturas artísticas que ocorreriam décadas mais tarde.

A nova teatralidade proposta , essencialmente deu-se em um transbordamento da cena para o imaginário do espectador, chamando a atenção às interseções entre palco e platéia, mais especificamente às evidências de que uma teatralidade cênica provocadora deveria afetar o comportamento do público. Foi o palco pulando para a vida, causando furor e indignação. Buscou a transcendência do teatro através da aplicação de uma teatralidade pura, destituída de controle, amoral. Propôs estabelecer o lugar teatral como o império abstrato da imaginação. Não defendeu somente a primazia da ficção frente ao naturalismo, exaltou a teatralidade despojada de recursos estéticos supérfluos, longe da psicologia e do drama social. O fim maior seria uma resultante cênica que desembocasse em uma teatralidade alardeada.

Em “Gestes et Opinions du Docteur Faustroll” (1911), uma novela cuja natureza o próprio nome indica, meio Fausto, meio troll , lançou as bases que fundamentaram sua teoria Patafísica. Originariamente, foi Ubu que se doutorava em Patafísica, simplesmente porque Hébert fora um professor de física. Mas o que fora a princípio uma “burla científica”, tornou-se mais tarde a própria estética jarryana: “A Patafísica é a ciência das soluções imaginárias que regula simbolicamente os lineamentos e propriedades dos objetos descritos por sua virtualidade” [3] . Seu desejo de construção destrutiva do teatro, demolição das linhas teatrais é marcado pelo senso de negação de tudo., idéia que se torna o próprio espetáculo. E quando não resta mais nada no palco que tenha vestígios da tradição ou de algum tipo de figuração reconhecível, da verossimilhança, ainda assim sobra o que de mais soberbo deve ser visto: a teatralidade. O palco revela-se despudoradamente nu, livre, pronto para assumir variadas formas, polifórmico.

Foi a partir da publicação de suas Obras Completas e com a conseqüente fundação do Colégio de Patafísica (1948) que Jarry deixou de ser encarado como um artista pitoresco e sim veemente, radical e profundo. O Colégio de Patafísica, em atividade até hoje, do qual Ionesco, René Clair, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Boris Vian foram, entre outros, membros fundadores, representou importante papel, ressaltando o valor de Jarry como um dos principais premonitores dos conceitos em que um grande viés da arte contemporânea está baseada. Trata-se de uma “nova ciência” que propõe a superação da metafísica buscando a “verdade das contradições e das exceções”. [4]

Ao fazer valer o insólito, o irracional, o paradoxo que tanto escandaliza a razão, devemos nos perguntar qual é a medida de resolução desse novo reino. Ubu pretende transcender Ubu, seu imenso estômago, cuja função digestiva é sua própria medida, mastigando e remastigando a sua própria excrescência. Para Jarry a Patafísica através do instrumental imaginário, seria a ponte de transcendência ilimitada.

A visão Patafísica também toca a questão do fantástico que o senso comum define como sendo uma violação das leis naturais, uma manifestação do impossível. Diz a Patafísica que o fantástico não é uma violação, mas uma revelação radical das leis naturais. Surge do contato direto com a realidade não filtrada através de nossos juízos. É portanto um alargamento das leis naturais até onde os preconceitos não permitem a chegada da fantasia imaginativa. Surge como uma alternativa de apreciação de fenômenos naturais e humanos baseados fundamentalmente na análise da irracionalidade concreta de tais acontecimentos e praticados à luz do humor crítico e do acaso.

A racionalidade Patafísica descobre que todo ato é defeituoso e traça investigações acerca do lugar entre as coisas. É a lógica do contraditório. Todo acontecimento, ainda que elementar,  resulta patafisicamente inesgotável e tolera uma série infinita de operações que, em si, constituem o fim desta “ciência maior”.

Como finalização, não poderia me furtar a apresentar alguns pensamentos que insurgiram dentro de mim, como artista, pesquisador e professor, a partir do contato com o universo de Alfred Jarry, possibilitando-me reflexões acerca de alguns aspectos da realidade atual do teatro, assim como conjecturas e conexões futuras para as artes cênicas. Dentre as questões que me ocorreram, destacaria as seguintes:

1 - O bem artístico tem natureza distinta de qualquer outra mercadoria, produto ou serviço. Não nasce de pesquisas de mercado, mas sim da necessidade expressiva do homem: seus questionamentos, anseios e aspirações da alma. O teatro caracteriza-se pela singularidade de cada representação, onde o único elemento imprescindível é o homem – ator, personagem e público. Nenhuma inovação tecnológica poderá, em tempo algum, substituir a magia da celebração do instante, em que um indivíduo se coloca sobre um palco e vive outro, para falar a um terceiro. O teatro constitui-se em uma tentativa de estimulação metafísica da própria existência. Não existe a cópia, a repetição: tudo é único. É o oposto da cultura globalizada, é a cultura singularizada.

2 - O teatro de amanhã não poderá escapar de sua tendência filosófica, que nos ensine a viver e pensar o mundo, para nele encontrarmos nosso lugar. Será um teatro sábio. Sabedoria acoplada à paixão.

3 - O conflito é a essência do teatro, como o é também da dialética. Mostrar a luta dos contrários e sua tendência à unidade, de onde decorrem as contradições existentes, e nascem as oposições e os novos conflitos, eis uma tarefa apaixonante para o teatro.

4 - A herança Patafísica nos deixa um legado pedagógico para o teatro, chamando a atenção para sua vocação como Escola de Imaginação, capaz de estimular a sensibilidade estética e social, de ampliar os limites da compreensão e da associação de idéias.

5 - Almejo um teatro que não duvide, que seja afirmativo, como preconizou Jarry. Que saiba todo o tempo de que lado está.

6 - Anseio por um teatro, que mesmo em desespero, lance um grito de alegria; que, mesmo enclausurado, aponte uma saída.

7 - Anseio por um teatro irresistível.

8 - Talvez o teatro não seja a coisa mais Bela que o homem inventou, porém é a coisa que mais se parece com a vida. Alfred Jarry, percebeu profundamente esta identidade e tentou fazer valê-la em todos os seus extremos e recursos. Violou normas e cânones em prol de um infinito “Mundo Novo” : a imaginação criadora.

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

BÉHAR, Henri – Jarry: le monstre et la marionnette, Paris, Larousse, 1973.
EVREINOV , Nicolás El Teatro En La Vida  , Buenos Aires, Ediciones Leviatán , 1956 .
JARRY, Alfred. Oeuvres Complètes d‘Alfred Jarry,Edition du Livre, Lausanne, Montecarlo & Henri Kaeser, , 1948.
___________ Gestes et Opinions du Dr. Faustroll, pataphysicien , Paris, Fasquelle, 1911.
___________. Ubu Rei, Porto Alegre, LP&M, 1987.



[1] JARRY, Alfred. Oeuvres Complètes d`Alfred Jarry, Edition du Livre - II, Lausanne, Montecarlo & Henri Kaeser, , 1948, p.323.
[2] Idem Ibidem, pp. 343-344.
[3] JARRY, Alfred Gestes et Opinions du Dr. Faustroll, pataphysicien , Fasquelle, Paris, 1911, p.20.
[4] Idem Ibidem, p. 21

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