quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A tortura:
o que é e como evoluiu na História

“A tortura deixou, para sempre, de existir”, dizia Victor Hugo, em 1874. Infelizmente, o século XX demonstra que o escritor francês se equivocou. Segundo dados da Anistia Internacional, a tortura física, moral e psicológica é hoje sistematicamente aplicada – ou pelo menos tolerada – por governos de 60 países.
A 10 de dezembro de 1948, A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração Universal dos Di­reitos Humanos, cujo artigo 5º reza:

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Atualmente, em mais de um terço dos países signatários da Carta Magna dos Direitos Humanos, a tortura é parte substancial dos métodos interrogatórios da polícia e das forças militares, sendo praticada para se obter informações, humilhar, intimidar, aterrori­zar, punir ou assassinar prisioneiros políticos e comuns.

O que é a tortura

A tortura foi definida pela Associação Médica Mundial, em assembléia realizada em Tóquio, a 10 de outubro de 1975, como:

“a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer”.

O psicanalista Hélio Pellegrino observa que “a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isto: ela procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. Através da tortura, o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue. É este o modelo básico no qual se apóia a ação de qualquer torturador. (...) Na tortura, o corpo volta-se contra nós, exigindo que falemos. Da mais íntima espessura de nossa própria carne, se levanta uma voz que nos nega, na medida em que pre­tende arrancar de nós um discurso do qual temos horror, já que é a negação de nossa liberdade. O problema da alienação alcança, aqui, o seu ponto crucial. A tortura nos impõe a alienação total de nosso próprio corpo, tornando estrangeiro a nós, e nosso inimigo de morte. (...) O projeto da tortura implica numa negação total – e totalitária – da pessoa, enquanto ser encarnado. O centro da pessoa humana é a liberdade. Esta, por sua vez, é a invenção que o sujeito faz de si mesmo, através da palavra que o exprime. Na tortura, o discurso que o torturador busca extrair o torturado é a negação absoluta e radical de sua condição de sujeito livre. A tor­tura visa ao avesso da liberdade. Nesta medida, o discurso que ela busca, através da intimidação e da violência, é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto”.

Enfim, é tortura tudo aquilo que deliberadamente uma pessoa possa fazer a outra, produzindo dor, pânico, desgaste moral ou desequilíbrio psíquico, provocando lesão, contusão, funcionamento anormal do corpo ou das faculdades mentais, bem como prejuízo à moral.

No Brasil, no período compreendido por este estudo (1964-1979), a tortura foi sistematicamente aplicada aos acusados de atividades consideradas “subversivas”. Entretanto, a incidência retratada nos procedimentos judiciais é bem menor que a sua real extensão e intensidade. Isso porque os Conselhos de Justiça Militar, via de regra, evitavam que as denúncias de torturas fossem consignadas aos autos das ações penais. Quando toleravam incorporá-las, o faziam de forma superficial, simplificada, genérica, demonstrando, assim, conivência com o comportamento criminoso dos órgãos de segurança do Estado. Raros os juizes-auditores que fizeram consig­nar nos autos a descrição pormenorizada das sevícias sofridas pelos réus e os nomes de seus algozes.

Muitas vezes as vítimas da tortura, por sua própria vontade ou aconselhadas por familiares, agrupamentos políticos ou advogados de defesa, optaram por silenciar, em seus interrogatórios na Justiça, sobre as torturas que padeceram, temendo, como a muitos sucedeu, que a denúncia induzisse a uma condenação antecipada. Muitos não falaram de seus sofrimentos com medo de retornarem às sessões de tortura, como ocorreu inúmeras vezes. No entanto, os que ousaram descrever os suplícios de que foram vítimas, os modos e os instru­mentos de tortura, os locais, a assistência médica e os nomes dos torturadores, e tiveram suas palavras consignadas nos autos pro­cessuais pela própria voz autorizada do Tribunal Militar, permitiram constatar que, no Brasil de 1964 a 1979, a tortura foi regra, e não exceção, nos interrogatórios de pessoas suspeitas de atividades con­trárias aos interesses do Regime Militar. Tal prática generalizada encontra amparo e fundamento ideológico na Doutrina de Segurança Nacional.

Evolução histórica da tortura

Ao longo dos séculos, a tortura era um direito do senhor sobre os escravos, considerados coisas, ou foi aplicada como pena advinda de sentenças criminais, O apedrejamento, o chumbo derretido na pele, a decepção de órgãos, eram penas impostas a infratores ou supostos infratores das leis e visavam obediência ao princípio do Talião, resumido pelo célebre axioma “olho por olho, dente por dente”, e tinham como fundamento o ressarcimento do mal causado através da aplicação do mesmo mal a quem o causara. Já o Código de Hamurabi, ordenamento legal do século 18 antes de Cristo, ado­tado na Babilônia, previa para os criminosos a empalação, a fo­gueira, a amputação de órgãos e a quebra de ossos.

A lei mosaica, do Antigo Testamento, defendia os escravos das arbitrariedades: “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido” (Êxodo 21,20). Entretanto, o livro do Eclesiástico admite a tortura dos escravos (“Jugo e rédea dobram o pescoço, e ao escravo mau torturas e interrogatório”, 33,27), embora defenda a dignidade deles (“Tens um só escravo? Trata-o como a um irmão, pois necessitas dele como de ti mesmo”, 33,32).

No Novo Testamento, o açoite aparece como a sevícia mais comum aos acusados de delitos, O apóstolo Paulo chega a apelar à sua cidadania romana para livrar-se da tortura (Atos dos Apósto­los 22,24). O Direito romano admitia a tortura, pois o processo baseava-se na auto-acusação e na confissão dos suspeitos, e não nas provas e nas testemunhas.

Em fins do século II, Tertuliano, na obra De Coruna, exorta os soldados convertidos ã fé cristã a evitarem praticar torturas. Dois séculos depois, Lactâncio, em sua Divinae Institutiones, escreve elo­quentes páginas contra a tortura, “por ser contra o direito humano e contra qualquer bem”. Já Santo Agostinho, na De Civitate Dei, escrita entre os anos 412 e 416, não chega a condenar a inclusão da tortura no Direito Romano, mas repudia sua aplicação, por tratar-se de pena imposta a quem não se sabe ainda se é culpado.

Pouco antes de Agostinho, em 382, o Sínodo Romano, presidido pelo Papa Dâmaso, remete alguns cânones aos bispos da Gália, entre os quais se declara expressamente que não são livres de pecado os funcionários civis que “condenaram pessoas à morte, deram senten­ças injustas e exerceram a tortura judiciária”. Apenas vinte anos após aquele sínodo ocorre uma virada no pensamento do magistério pontifício da Igreja. O Papa Inocêncio I (401-417) escreve em sua Epístola VI: “Pediram-nos a opinião sobre aqueles que, após have­rem recebido o batismo, tiveram cargos públicos e exerceram a tortura, ou aplicaram sentenças capitais. A este respeito nada nos foi transmitido”. Iniciava-se, pois, o consentimento implícito às normas processuais romanas, apesar da suposta cristianização do Império. Entendia-se que a Igreja não podia reprovar o uso da espa­da no Direito penal, uma vez que isso decorria da própria “vontade de Deus”. E considerando que o Estado, após Constantino, contava com um número sempre maior de funcionários cristãos, exigir que se mantivesse frente a ele a mesma atitude critica de Tertuliano, de Lactâncio, de Agostinho e de todos que sentiram de perto a per­seguição, significava – aos olhos da nova teologia do poder – impedir a justiça penal de seguir o seu curso “normal”.

Com as invasões bárbaras, a tortura diminuiu e as fontes conhe­cidas só retomam o tema por ocasião da conversão dos búlgaros, em 866. A eles escreve o Papa Nicolau I, para esclarecê-los sobre questões dogmáticas e morais, entre as quais o costume que tinham, antes de abraçar a fé cristã, de torturar os criminosos. O Papa insiste na supressão da tortura, acentuando que a confissão deve ser espontânea, pois a tortura não é admitida “nem pela lei divina e nem pela lei humana”. Recomenda ainda que, em lugar de suplícios, apele-se às testemunhas e exija-se o juramento sobre os Evangelhos.

A reintrodução da tortura aos processos penais

No século XII, o Direito penal do Ocidente retoma princípios do Direito Romano imperial e reintroduz a tortura judiciária, apesar de, à mesma época, afirmar o Decretum Gratiani: “A confissão não deve ser obtida pela tortura, como escreve o Papa Alexandre”.

No século seguinte, a tortura passa a fazer parte dos códigos processuais, especialmente nos Estados centralizados, como Castella de Afonso X, a Sicília de Frederico II e a França de Luis IX. Simul­taneamente a Igreja passa a admitir o uso processual da tortura. Em 1244, o Papa Inocêncio IV aprova a legislação penal de Fre­derico II e, em 1252, em seu Ad Extirpanda, aceita que “os hereges, sem mutilação e sem perigo de vida podem ser- torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores”. fl o retomo oficial ao sistema penal ro­mano, fundado na auto-acusação e na confissão do réu. Essa trágica involução reflete-se na obra do maior pensador medieval, Tomás de Aquino. Em fins do século XIII, ao tratar das injúrias contra as pessoas, na parte moral da Suma Teológica (questão 64), ele se refere à mutilação, à flagelação dos filhos e dos servos e ao encar­ceramento. Mas não menciona a tortura, exceto em sua Expositio super Job: “Sucede às vezes que, quando um inocente é acusado falsamente perante um juiz, este, para descobrir a verdade, o sub­mete à tortura, agindo segundo a justiça; mas a causa disso é a falta de conhecimento humano”) São Tomás admite pois que, não havendo outro recurso para se apurar a verdade, é justa a aplica­ção da tortura, mesmo sobre um inocente. Tal posição inaugura, na Igreja, a adoção da tortura como prática sistemática de preser­vação da disciplina religiosa. Ela passa a ser oficialmente aceita nos processos de heresia, não obstante não se recomende sua apli­cação direta por religiosos, padres e bispos.

A Inquisição e a Doutrina de Segurança Nacional

A mais notória obra sobre o uso da tortura pela Igreja é O Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico (1320-1399). No capítulo 3, “Sobre o interrogatório do Acusado”, o inquisidor reco­menda: “aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade”. O capítulo 5 traz como título “Sobre a tortura”, e tem como frase introdutória: “Tortura-se o Acusado, com o fim de o fazer confessar os seus crimes”. Quem tortura, os eclesiás­ticos ou o braço secular? A esta indagação responde o frade ita­liano que comandou a Inquisição na região espanhola de Aragón:

“Quando começou a estabelecer-se a Inquisição, não eram os Inquisidores quem aplicavam a tortura aos Acusados, com medo de incorreram em irregularidades. Esse cuidado incum­bia aos juizes leigos, conforme a Bula Ad Extirpanda, do Papa Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os Magistrados obrigar com torturas os Hereges (esses assassi­nos das almas, esses ladrões da fé cristã e dos sacramentos de Deus) a confessar os seus crimes e a acusar outros hereges seus cúmplices. Isto no princípio; posteriormente, tendo-se verificado que o processo não era assaz secreto e que isso era inconveniente para a fé, achou-se que era mais cômodo e salutar atribuir aos Inquisidores o direito de serem eles mesmos a infligir a tortura, sem ser preciso recorrer aos juizes leigos, sendo-lhes ainda outorgado o poder de mutua­mente se relevarem de irregularidades em que às vezes, por acaso, incorressem.

“De ordinário utilizam os nossos Inquisidores cinco espécies de tormentos no decorrer da tortura. Como isso são coisas sabidas de toda a gente, não irei deter-me neste assunto. Podem consultar-se Paulo, Grilando, Locato, etc. Já que o Direito Canônico não prevê particularmente este ou aquele su­plicio, poderão os juizes servir-se daqueles que acharem mais aptos para conseguirem do acusado a confissão de seus cri­mes. Não se deve, porém, fazer uso de torturas inusitadas. Marcílio menciona catorze espécies de tormentos: acaba por afirmar que imaginou ainda outros, como seja a privação de sono, também referida e aprovada por Grilando e Locato. Mas, se me é permitido dizer a minha opinião, isso é mais trabalho de carrascos do que tratado de Teólogos.

“É por certo um costume louvável aplicar a tortura aos cri­minosos, mas reprovo veemente esses juizes sanguinários que, por quererem vangloriar-se, inventam tormentos de tal modo cruéis que os Acusados morrem durante a tortura ou acabam por perder alguns dos membros. Também Antônio Gomes condena violentamente esse procedimento”.

No Brasil, de 1964 a 1979, os métodos de interrogatórios e o sistema processual baseados na Doutrina de Segurança Nacional pa­recem advir da Inquisição medieval. Esta também instigava a dela­ção entre parentes (“em matéria de heresia, o irmão pode teste­munhar contra o irmão e o filho contra o pai”), reduzia o número de testemunhas (“bastam dois testemunhos para condenar definiti­vamente em matéria de heresia”), aceitava delações anônimas (“não deverão tornar-se públicos os nomes das testemunhas, nem dá-los a conhecer ao Acusado”). Compare-se ainda o modo de se proceder ao interrogatório de presos políticos às “principais manhas que o Inquisidor deve empregar contra as manhas dos hereges:

1. Através de repetidas interrogações, obrigá-los a responder claramente e de forma precisa às questões formuladas.

2. Se se vier a presumir que um Acusado, acabado de prender, tem intenção de esconder o seu crime (o que é fácil de desco­brir antes do interrogatório, seja por meio dos carcereiros, seja por pessoas mandadas para espiar o Acusado), será então necessário que o Inquisidor fale com muita doçura ao Herege, lhe dê a entender que já sabe de tudo.

3. Se um Herege, contra o qual não foram ainda fornecidas provas suficientes de culpa, mesmo que haja bastos indícios, continuar a negar, fará o Inquisidor com que ele compareça e far-lhe-á perguntas ao acaso. Logo que o Acusado haja ne­gado qualquer coisa, lançará mão da Ata em que se contêm os interrogatórios precedentes. Poderá folheá-los e dirá: “É muito claro que me estás a esconder a verdade, deixa de estar a dissimular”. Tudo de forma a que o Condenado julgue estar já reconhecido como culpado e que na Ata estão con­tidas provas contra ele. (...).

4. Se o Acusado teimar em negar o seu crime, deverá o In­quisidor dizer-lhe que vai partir brevemente para longe, que não sabe quando virá, que lhe desagrada o ter que se ver obrigado a deixá-lo apodrecer nas prisões, que bem desejava tirar a limpo toda a verdade de sua boca, a fim de o poder mandar embora e dar por findo o processo. Mas, já que ele se obstina em não querer confessar, que o vai deixar a ferros até o seu regresso, que tem pena dele por lhe parecer de saúde delicada, que possivelmente irá adoecer, etc.

5. Se o Acusado continuar a negar, multiplicará os interrogatórios e as interrogações. E desta forma, ou o Acusado há de confessar, ou há de dar respostas diversas. Se der várias res­postas diferentes, é o bastante para o conduzir à tortura.

6. Se o Acusado persistir na negação, pode o Inquisidor falar-lhe com doçura, tratá-lo com um pouco mais de atenções no respeitante à comida e à bebida, fazer também com que algu­mas pessoas de bem o vão visitar e conversem com ele, ins­pirando-lhe confiança, aconselhando-o a confessar, prometen­do-lhe que o Inquisidor lhe há de fazer mercês, fingindo-se (de) mediadores entre este e o Acusado. (...)

7. Uma outra artimanha do Inquisidor será chamar um cúm­plice do Acusado, ou pessoa a quem este estime e em quem acredite, a fim de a enviar repetidas vezes para falar com o Prisioneiro e conseguir o segredo. (...) Numa palavra, devem ser utilizadas todas as artimanhas que não tragam em si apa­rência de mentira”.

Os tribunais de Inquisição não seguiam ordem jurídica alguma os processos não obedeciam às formalidades do Direito. Estimu­lava-se a delação, que formalizava a peça acusatória. A denúncia oral fazia-se com as mãos sobre o Evangelho, como juramento e, a partir daí, o inquisidor tramitava o processo, mantendo oculta a identidade do denunciante. A obrigação de denunciar os hereges era permanente. Mesmo quando a acusação intentada era completamente desprovida de verdade, o inquisidor não era obrigado a apagar de seu livro de registros processuais os dados referentes aos supostos hereges. Isso porque, dizia-se, “aquilo que não se descobre em certa altura, pode vir a descobrir-se noutra”.

Os próprios inquisidores davam buscas gerais à procura de he­réticos. De tempos em tempos, nas paróquias escolhiam-se alguns padres e leigos, “pessoas de bem”, a quem se fazia prestar jura­mento, e que promoviam buscas frequentes “e escrupulosas em todas as casas, nos quartos, celeiros, subterrâneos, etc.”, a fim de se cer­tificarem se porventura não havia hereges escondidos por ali.

A progressiva rejeição da tortura

Com a evolução dos tempos, a Igreja, envolvida pelas idéias humanistas, procurou minorar tais procedimentos medievais, afas­tou-se dos centros de poder e estabeleceu a igualdade de todos perante a Justiça, restringindo sobremaneira a prática de torturas e de detenções preventivas. Foram suprimidos o uso da água fer­vente, do óleo quente e do ferro em brasa. Aboliu-se também o principio de que “em qualquer julgamento Deus estará presente para dar razão a quem tiver”. Pois o “poder divino” submetia o acusado a provas. Se saisse ileso, era inocente. Se a ferida não infeccionasse, se a pele não formasse bolhas, não era considerado culpado e sua inocência era proclamada. Caso contrário, se não resistisse à dor, era obrigado a confessar sua culpa e, portanto, incriminado.

Ainda que no século XVI se tenham publicado os ordenamentos criminais de Carlos V, favoráveis a todo tipo de crueldade, o huma­nista cristão João Vives, em seu comentário a De Civitate Dei, de Santo Agostinho, rejeita decididamente a tortura: “Como podem viver tantos povos, inclusive bárbaros, como dizem os gregos e lati­nos, que permitem torturar durissimamente um homem de cujos delitos se duvida? Nós, homens dotados de todo senso humanitário, torturamos homens para que não morram inocentes, embora tenha­mos deles mais piedade do que se morressem: muitas vezes os tor­mentos são, de longe, piores do que a morte... Não posso e não quero alongar-me aqui sobre a tortura... é um lugar comum, entre os retóricos, falar pró e contra ela. Enquanto o que dizem contra é fortíssimo, os argumentos a favor são fúteis e fracos”.

Em 1624, João Graefe ou Grevius, pastor armeniano holandês, publicou em Hamburgo o seu Tribunal Rejormatum, verdadeiro tra­tado de teologia moral a respeito da tortura. Segundo ele, esta não pode ser justificada pelas Escrituras, é contra a caridade cristã e o direito natural. A esta obra seguem-se outras de autores católicos, von Sppe (Cautio criminalis, 1631), I. Schaller (Paradoxon de tor­tura in christiana republica non exercenda, 1657), A. Nicolas (Si la torture est un moyen súr à vérijier les crimes secrets, 1682). A de maior importância, porém, foi a dissertação de C. Thomasius, De tortura ex joris christianorurn proscribenda, publicada em Halle, em 1705, na qual ele defende a exclusão da tortura dos processos penais, por ser uma pena desproporcional e contra a justiça em geral, bem como por ser contra o senso cristão de justiça e de proporção. Aconselha ao príncipe a considerar sua abolição pela ótica mera­mente política, uma vez que teologicamente e segundo o direito na­tural ela é insustentável.

A partir da famosa obra de C. Beccaria, Dei delitti e delle (Livorno, 1764), os iluministas retomam os argumentos de Thoma­sius e conseguem introduzir a proibição da tortura na legislação vigente, a começar pela Suécia e pela Prússia de Frederico II. No entanto, o mesmo não ocorre na Igreja Católica. A 3 de fevereiro de 1766, o Santo Ofício inclui no Index de livros proibidos a obra de Beccaria. E Santo Afonso de Ligório, na edição de 1785 de sua Teologia Moral, ainda se pergunta: “O que é lícito ao juiz em ques­tão de tortura?”. O único moralista que se coloca ao lado de Tho­masius é o capuchinho alemão R. Sasserath, em seu Cursus Theolo­giae Moralis, de 1787.

Também a Revolução Francesa, trouxe significativos avanços no tratamento da questão, impondo às autoridades o respeito à inte­gridade física dos detidos e, consequentemente, proibindo a tortura.

A partir do século XIX, nenhum manual de Teologia Moral recoloca a questão da tortura, pois, já no século XVII, fôra consi­derada prática “moralmente censurável” e, no século XVIII, erigida em crime. Contudo, no Brasil colônia, o Código Criminal estipulava para os escravos a pena de açoite e, por vezes, a sentença punha o escravo a ferros. A única atenuante era o impedimento legal de o negro receber mais de 50 chibatadas diárias... Para os delitos graves havia o emparedamento e a possibilidade de quebra dos dentes e de ossos do culpado.

É no século XX, após a Primeira Guerra Mundial, que a tortura volta como método privilegiado de interrogatório policial e militar em dezenas de países, embora excluída da legislação. Na Segunda Guerra, ela é usualmente aplicada aos prisioneiros de guerra, em especial nos campos de concentração nazistas, vitimas inocentes de um genocídio programado que, após o conflito mundial, fez emergir na consciência dos povos de todo o mundo a exigência de se ter um estatuto que objetive e defenda os valores essenciais da vida humana. Assim, os países membros da ONU assinaram, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde as torturas e os maus-tratos são definitivamente condenados.

Poucas normas jurídicas foram tão aceitas no mundo das nações civilizadas como aquelas proclamadas pela ONU.

Sua influência fez com que quase todos os países adotassem em seus ordenamentos jurídicos, regras de proibição terminantes com tais práticas.

Apesar disso, a humanidade assiste ao alastramento endêmico da tortura.

O Concílio Vaticano II (1963-1965), em sua Constituição Gau­dium et Spes, declara que “tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, as torturas físicas ou morais e as ten­tativas de dominação psicológica.., são efetivamente dignas de cen­sura, (pois) contradizem sobremaneira a honra do Criador” (nº 284).

Em 1977, as Igrejas Protestantes e Ortodoxas, através do Con­selho Mundial de Igrejas (CMI) também reprovaram, em importante declaração, a prática ignominiosa da tortura:

“Dadas as trágicas dimensões da tortura em nosso mundo, ins­tamos as igrejas a usarem este ano do trigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos como ocasião especial para tornarem públicas a prática, a cumplicidade, e a propensão à tortura existentes em nossas nações. A tortura é epidêmica, é gerada no escuro, no silêncio. Conclamamos as igrejas a desmascararem a sua existência abertamente, a que­brarem o silêncio, a revelarem as pessoas e as estruturas de nossas sociedades responsáveis por estas violações dos direi­tos humanos que são os mais desumanizantes”.

Nos últimos anos, a tortura foi prática disseminada especial­mente em países governados sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional, prática que subverte o objeto essencial do Estado, que é o resguardo das liberdades individuais e a promoção do bem comum. À luz da Segurança Nacional, a tortura não decorre apenas do sadis­mo dos torturadores; ela é parte integrante do sistema repressivo montado pelo Estado, a fim de sufocar os direitos e as liberdades de seus opositores. É parte da estratégia de manutenção do poder. Acreditando em sua eficácia e rapidez, as investigações policiais e militares passaram a adotá-la como método exclusivo de apuração de fatos considerados crimes contra a segurança nacional. Para tanto, a tortura tornou-se matéria de estudo teórico e prático em academias militares e em centros de instrução policial.


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