sábado, 13 de dezembro de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Selfie"

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Divertida e pertinente reflexão



Lionel Fischer



"Claudio é um homem super conectado que armazena toda a sua vida em computadores, redes sociais e nuvens. Debruçado sobre um projeto de criar um sistema único para armazenamento de todos os dados de uma pessoa, vê seu sonho ir por água abaixo quando deixa cair um café em seu equipamento, que sofre uma pane e apaga tudo. Ele então torna-se um homem sem passado, já que não se lembra de nada, pois toda a sua memória era virtual. A partir daí, Claudio inicia uma saga em busca da memória perdida, recorrendo a vários personagens de sua vida para reconstituir sua história".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "Selfie", projeto idealizado por Carlos Grun, Mateus Solano e Miguel Thiré. Marcos Caruso assina a direção da montagem, em cartaz no Teatro Miguel Falabella. No elenco, Mateus Solano dá vida a Claudio, com Miguel Thiré interpretando 11 personagens - Paulista, o amigo técnico / Solange, a mãe/ Amanda, a namorada/ Álamo, amigo maconheiro/ Empresário/ Suzana Souza, apresentadora de TV/ Barman/ Mulher do bar/ Deputado/ Menino e Inocêncio, o velho.

Pessoas próximas se divertem com minha incapacidade de resolver qualquer questão tecnológica que uma criança de três anos (com sono) resolveria em segundos. Isto é um fato, sem dúvida. Mas suponho (sou um otimista desvairado) que tal inabilidade se deva menos a um QI lamentável do que à minha consciente rejeição de me integrar a um universo que cada vez mais prioriza o virtual em detrimento do humano. Aos que discordam, permito-me um exemplo. 

Muitos se orgulham de possuir milhares de amigos no Face - que admito não saber exatamente o que é. Pois bem: suponhamos que numa sexta-feira à noite esta privilegiada e tão amada criatura esteja angustiada ou simplesmente padecendo de prosaica dor de dente. Será que um desses milhares de amigos virtuais virá socorrê-la oferecendo amparo, no primeiro caso, ou um comprimido de Toragesic, no segundo?  

É claro que sei que qualquer tecnologia, desde que bem utilizada, pode oferecer enormes benefícios à humanidade. No entanto, acredito que estejamos vivendo um momento em que a virtualidade se tornou muito mais importante do que o real da vida. E esta me parece ser a questão mais relevante abordada por "Selfie".

Como expresso no parágrafo inicial, o personagem Claudio passa literalmente a não existir quando seu equipamento entra em colapso. Se tudo que lhe interessa foi deletado, se sua memória foi apagada, o que lhe restaria viver no presente? E embora o personagem, em sua busca para se reencontrar, viva situações muito engraçadas, nem por isso as mesmas deixam de conter elementos trágicos. E aqui reside o maior mérito de Daniela Ocampo: ter escrito uma peça que se vale do humor como elemento deflagrador de urgentíssimas e mais do que pertinentes reflexões. 

Com relação ao espetáculo, Marcos Caruso impõe à cena uma dinâmica cuja expressividade decorre não apenas de marcas criativas e imprevistas, mas também da maravilhosa performance dos dois intérpretes, tanto no que diz respeito à palavra articulada quanto ao universo gestual, aí incluindo-se as passagens (quase todas) em que os objetos são recriados através de esmerada mímica.

Na pele de Claudio, Mateus Solano reafirma, uma vez mais, suas fantásticas qualidades de intérprete, construindo o personagem com comovente carga de sinceridade, sem jamais partir para soluções que objetivem extrair inócuas gargalhadas da plateia. Vivendo onze personagens, Miguel Thiré evidencia notável capacidade de metamorfose, impondo a cada papel características diferenciadas e em total sintonia com as personalidades retratadas. 

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta original e mais do que oportuna empreitada teatral - Sol Azulay (figurinos), Felipe Lourenço (iluminação), Marcos Caruso (cenografia), Lincoln Vargas (direção musical e trilha sonora) e Arlindo Teixeira (preparação corporal).

SELFIE - Texto de Daniela Ocampo. Direção de Marcos Caruso. Com Mateus Solano e Miguel Thiré. Teatro Miguel Falabella. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h. 

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