quarta-feira, 9 de julho de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Dois amores e um bicho"

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Instigante montagem no Galpão



Lionel Fischer



Como uma bomba de efeito retardado, a peça em questão tem como mola propulsora um fato ocorrido há 15 anos. Pablo e Karen, pais da menina Carol, estão assistindo televisão quando se deparam com uma notícia aterradora: uma bomba explodira em um colégio, matando muitas crianças e professores. Mesmo diante de tal impacto, Pablo concentra sua atenção na insistência de seu cachorro Cabral em molestar o outro, Bandido, menor e supostamente incapaz de se defender. Em um acesso de fúria, mata a pontapés o cão molestador, o que o leva a cumprir pena de 40 dias em uma cadeia.

Quando se inicia a peça, a família está no zoológico onde Carol trabalha como veterinária. Todos contemplam a jaula onde um chimpanzé fora colocado, isolado dos demais, por insistir em molestar sexualmente os outros. Carol, que nunca entendera as razões que haviam levado o pai à prisão, o inquire com insistência. E acaba tendo acesso à verdade. Pouco depois, o casamento entre Pablo e Karen entra em colapso.

Eis, em resumo, o enredo de "Dois amores e um bicho", mais recente montagem do Grupo Tentáculos Espetáculos. De autoria do venezuelano Gustavo Ott, a peça chega à cena (Galpão do Espaço Tom Jobim) com direção de Guilherme Delgado e elenco formado por Vítor Fraga (Pablo), Ana Paula Novellino (Karen), Yndara Barbosa (Carol) e Luiz Paulo Barreto, que dá vida a vários personagens. 

Em 2006, o Museu de História Natural da Universidade de Oslo, na Noruega, promoveu uma exposição com o tema "Homossexualidade Animal", apresentando modelos, fotografias e textos para exemplificar algumas das 1.500 espécies de animais onde a homossexualidade foi observada, abrangendo desde primatas a vermes intestinais. Ou seja: trata-se de um fato incontestável que se enquadra, sem nenhum conflito, nas leis da Natureza. Mas é possível que Pablo ignorasse tal evidência. Ainda assim, o que estaria por trás da injustificada atitude que tomou contra um cão que, sendo seu, supostamente amava? 

Se Pablo frequentasse o divã de um analista, talvez fosse induzido a refletir sobre a possibilidade de ser um homossexual latente. Ou então seria estimulado a refletir sobre uma possível identificação com o cão menor, mais fraco, e por isso teoricamente indefeso e desprotegido. Será que Pablo se encaixa em uma dessas possibilidades? E admitindo ser a última a mais provável, o caráter punitivo de sua atitude se limitaria ao episódio em questão ou, numa perspectiva mais abrangente e sombria, revelaria uma personalidade capaz de perpetrar atos violentos, desde que favorecidos por determinadas circunstâncias?

Como não creio que a peça tenha por prioridade mergulhar em uma patologia específica, imagino que o autor pretendeu, através do personagem Pablo, nos alertar sobre a violência, explícita ou latente, que parece inerente à condição humana. E minha crença também se baseia no fato de que, a partir de um certo ponto, somos informados de que várias espécies de animais estão sendo dizimadas no zoológico. Como tudo indica não tratar-se de uma epidemia, quem seria o responsável pela matança? Alguém como Pablo? Talvez o próprio? Ou será que, em termos metafóricos, o autor estaria sugerindo que, atualmente, os homens estão quase que totalmente tomados por uma pulsão de morte? Thanatos teria, desgraçadamente, se sobreposto a Eros? É uma hipótese. 

Com relação ao espetáculo, Guilherme Delgado impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, cabendo destacar o aprisionamento de grande parte das marcações, como se os personagens estivessem, eles próprios, circunscritos a jaulas criadas, por um lado,  pelo contexto histórico e social, e por outro reforçadas por uma extrema dificuldade de entendimento, primeiro passo rumo à total intolerância.

No tocante ao elenco, Vítor Fraga confere grande intensidade dramática a Pablo, construindo uma figura cênica simultaneamente ameaçadora e desprotegida. Ana Paula Novelinno convence plenamente na pele de Karen, valorizando com grande sensibilidade tanto a indignação da personagem quanto o vazio que sente diante de uma relação destroçada. Yndara Barbosa trabalha bem as nuances de sua personagem, mas precisa ficar atenta a questões vocais - muitas vezes não se escuta com clareza algumas palavras que profere. Luiz Paulo Barreto defende com correção os vários personagens que interpreta.

Na equipe técnica, cabe destacar a ótima tradução de Carlito Azevedo, sendo muito expressivas a iluminação de Daniel Archangelo e a cenografia de Carlos Augusto Campos - e neste particular gostaria de destacar o forte impacto que advém dos animais enjaulados, cuja graciosidade individual contrasta com o excesso dos mesmos em cada jaula. Ricardo Rocha responde por figurinos corretos.

DOIS AMORES E UM BICHO - Texto de Gustavo Ott. Direção de Guilherme Delgado. Com Vítor Fraga, Ana Paula Novellino, Yndara Barbosa e Luiz Paulo Barreto. Galpão do Espaço Tom Jobim. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.







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