quinta-feira, 22 de maio de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Cock - briga de galo"

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Dilemas amorosos no Poeira


Lionel Fischer



"A peça flagra um homem inerte (John), dividido entre ficar com seu parceiro de longa data (M) ou se abrir para uma nova possibilidade, assumindo o amor por uma mulher (W). Vivendo uma relação estável com seu companheiro, ele não apenas encara o dilema de encerrar uma longa história de amor, mas entra em conflito ao se apaixonar por alguém do sexo oposto, enfrentando a oposição do seu parceiro e também de F, pai de M, que não acredita na 'mudança' de opção de John".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o enredo de "Cock - briga de galo", de autoria de Mike Bartlett, em cartaz no Teatro Poeira. Inez Viana assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Felipe Lima (John), Debora Lamm (W), Márcio Machado (M) e Helio Ribeiro (F).

Em uma época em que, felizmente, as relações amorosas estão sendo cada vez mais redesenhadas, expandindo opções e assim libertando-se gradativamente dos grilhões impostos pela moral e os bons costumes - sendo ambos determinados, naturalmente, pelos detentores do poder, seja qual for a esfera do mesmo -, nada mais salutar do que um texto que proponha uma reflexão sobre um tema tão atual e relevante.

Sendo Mike Bartlett um dos maiores dramaturgos da atualidade, em nada me surpreende que tenha criado um contexto absolutamente propício para debater uma questão tão fundamental. Mas ainda que considerando brilhantes os diálogos e muito consistente a evolução da trama, em última instância me gerou uma certa dúvida o sentido maior da presente obra - se é que o autor pretendeu conferir à mesma tal sentido. Senão, vejamos.

Com relação à inesperada atração de John por uma mulher, isto é perfeitamente cabível e aceitável. Como são cabíveis e aceitáveis todos os conflitos daí decorrentes entre os três personagens principais, por sinal trabalhados de maneira impecável, tanto no que concerne aos momentos mais dramáticos quanto naqueles em que o humor predomina. 

No entanto, a partir de um certo ponto, comecei a me perguntar por que W e M lutam tão desesperadamente por alguém que, além de só exibir dúvidas, não contém nada de particularmente sedutor? Se John, além de bonito (fato que me parece irrelevante), fosse um homem inteligente, sensível, culto, engraçado, um potencial parceiro para uma sólida história de amor, ou ao menos reunisse alguns desses predicados, até entenderia a ferrenha disputa. Mas não me parece ser o este o caso.

E, finalmente: quando o longo impasse parece ter chegado a um desfecho satisfatório para as partes envolvidas, nos deparamos com M implorando a John que o auxilie em uma tarefa prosaica, recebendo em troca apenas um silêncio inicial e em seguida um grito de negação. Diante de tal quadro, o que estaria insinuando o autor? Que M e John jamais chegarão a se entender, sendo como são? Ou que, em uma instância mais ampla, as relações homossexuais estariam fadadas ao fracasso, independentemente das personalidades envolvidas? 

Como esta segunda hipótese me soa insuportavelmente preconceituosa, sou levado a crer que a primeira possa ser a verdadeira. E aí retorno ao já dito: a que atribuir tamanho interesse por um ser que, em meu entendimento, carece de predicados capazes de gerar tão arrebatada disputa por seu amor?

Com relação ao espetáculo, Inez Viana impõe à cena uma dinâmica criativa e eletrizante, lançando mão de marcações que traduzem, de forma precisa e sensível, os principais conteúdos em jogo. E cabe também salientar sua ótima atuação junto ao elenco.

Na pele de John, Felipe Lima extrai todo o potencial do personagem, ainda que o mesmo seja um tanto ingrato, pois termina a peça do mesmo modo que a iniciou - sempre indeciso, sempre imerso nas mesmas dúvidas. Vivendo M, Márcio Machado é uma fortíssima presença cênica, trabalhando com a mesma eficiência a agressividade, a histeria e a fragilidade do maravilhoso personagem que lhe coube. Sem dúvida, um dos desempenhos mais marcantes da atual temporada.

O mesmo se aplica a Debora Lamm, naquela que considero sua melhor atuação até hoje. Com natural vocação para a comédia, aqui Debora não deixa de estar engraçada, mas ao mesmo tempo consegue explorar de forma comovente as características mais dramáticas da personagem. Vivendo F, Helio Ribeiro valoriza ao máximo sua breve participação, materializando na cena um pai compreensivo e parceiro, mas também capaz de contundentes ironias e possuidor de um cinismo um tanto deplorável.

Na equipe técnica, é de excelente nível a tradução de Eduardo Muniz e Ricardo Ventura, a mesma excelência presente nos figurinos de Julia Marini, na luz de Renato Machado, na trilha sonora de João Callado e na direção de movimento de Dani Amorim. Quanto à identidade visual a cargo de Gabriel Medeiros, não tenho como avaliá-la, pois não sei o que vem a ser isto.

COCK - BRIGA DE GALO - Texto de Mike Bartlett. Direção de Inez Viana. Com Felipe Lima, Debora Lamm, Márcio Machado e Helio Ribeiro. Teatro Poeira. Terça a quinta, 21h.

  




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