sexta-feira, 13 de julho de 2012

Teatro/CRÍTICA

"Valsa nº 6"

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Nelson Rodrigues em belíssima versão


Lionel Fischer


Encenada pela primeira vez em 1951, no Teatro Serrador, sob a direção de Henriette Morinau e com Dulce Rodrigues (irmã de Nelson Rodrigues) no papel de Sônia, "Valsa nº 6" é um dos textos mais instigantes de nosso maior dramaturgo. E digo instigante porque permite grande variedade de interpretações, não raro  conflitantes.

E isto se deve, em minha opinião, a uma certa dificuldade generalizada de se entender que, mesmo levando-se em conta a delirante e fragmentada estrutura narrativa criada pelo autor, existe uma história sendo contada e que pode ser apreendida com bastante clareza - tentarei, mais adiante, explicitar meu ponto de vista. A atual versão, em cartaz no Espaço Tom Jobim - Galpão, leva a assinatura de Claudio Torres Gonzaga e é protagonizada por Luisa Thiré.

A primeira questão que costuma afligir espectadores aflitos é a seguinte: "Afinal de contas, Sônia está viva ou está morta? Se está morta, como poderia falar sobre seu passado?". E aqui não custa nada relembrar o que disse Nelson Rodrigues, em várias ocasiões: "Não vejo nenhum problema no fato de uma personagem estar morta. Uma personagem morta pode ser, do ponto de vista dramático, bem mais interessante do que uma viva" - as palavras podem não ter sido exatamente estas, mas o conteúdo, sim.

Mas vamos imaginar, em respeito aos aflitos, uma hipótese, digamos, intermediária: Sônia agoniza. E agoniza enquanto busca compreender o que aconteceu em sua vida. Ela tenta saber quem é Sônia. Lembra-se de um médico, o dr. Junqueira, que examinou sua garganta, gerando-lhe uma certa vergonha. Recorda-se de Paulo, no início somente um nome, depois alguém de quem gostava, um homem casado e mais velho. Tudo leva a crer que tenha sido assasinada, aos 15 anos, quando tocava no piano a "Valsa nº 6", de Chopin. Enfim...uma série de fragmentos que, aos poucos, vão conferindo algum sentido à sua memória incompleta.

E aqui chegamos ao que me parece ser o tema central desta obra magnífica: uma desesperada tentativa de, através da reconstituição da memória, entender o tempo presente e então libertar-se do passado. E a montagem de Claudio Torres Gonzaga é exemplar no tocante à materialização desta premissa essencial, já que a personagem tem por figurino um imenso vestido branco, que prende seu corpo às laterais do espaço cênico, que não raro a sufoca e subjuga, mas do qual procura incessantemente libertar-se - bela metáfora, sem dúvida, dos grilhões da memória que a angustiam.

Uma vez criado este belíssimo "achado", toda a encenação gira em torno das relações que a personagem estabelece com esta prisão simbólica, tanto nos momentos em que encarna Sônia quanto naqueles em que dá vida a outros personagens, seja falando consigo mesma ou com a platéia. E tudo isto através de marcações altamente expressivas e diversificadas, em total sintonia com os conteúdos em jogo.

Com relação a Luisa Thiré, a atriz exibe aqui um de seus melhores trabalhos, talvez o mais significativo. Entregando-se apaixonadamente à personagem, Luisa está irretocável tanto no que concerne ao texto articulado, mas também no que diz respeito à expressividade corporal. Sem dúvida, uma das performances mais marcantes da atual temporada.

Na equipe técnica, Sérgio Marimba responde por uma cenografia espectral e lúgubre, como a sugerir que tudo se passa numa espécie de sótão constituído de memórias ancestrais. Igualmente notável a luz de Luiz Paulo Nenen, que pontua com vigor e sensibilidade toda a dilacerada trajetória da personagem. Quanto ao já mencionado vestido, idealizado por Teca Fichinski, provavelmente se trata da mais expressiva criação desta maravilhosa figurinista. Igualmente irrepreensível a trilha sonora de Tomás Gonzaga que, a partir de um cerrto momento, começa a alterar o andamento da conhecida valsa e até mesmo a desfigurá-la, contribuindo de forma decisiva para realçar as desesperadas buscas da personagem. E, finalmente, todos os plausos possíveis para a deslumbrante direção de movimento de Kika Freire, sem dúvida essencial para o êxito desta montagem imperdível.

VALSA Nº 6 - Texto de Nelson Rodrigues. Direção de Claudio Torres Gonzaga. Com Luisa Thiré. Espaço Tom Jobim - Galpão. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 20h30.




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