quinta-feira, 7 de junho de 2012

Diferentes tipos de desempenho





Michael Chekhov




TRAGÉDIA


O que acontece a um ser humano quando ele, por alguma razão, passa por experiências trágicas (ou heróicas)? Sublinharemos apenas uma característica de tal estado de espírito: ele sente como se as fronteiras comuns de seu ego fossem derrubadas; sente que tanto psicológica quanto fisicamente está exposto a certas forças que são muito mais fortes, muito mais poderosas do que ele próprio. Sua experiência trágica chega, toma posse de si e abala todo o seu ser. Sua sensação, reduzida a palavras, pode ser descrita como: "algo poderoso está agora presente lado a lado comigo, e isso é independente de mim no mesmo grau em que sou dependente disso". Essa sensação permanece, quer seja causada por um conflito trágico interno, como no caso dos principais conflitos de Hamlet, quer o golpe provenha de fora e seja ocasionado pelo destino, como no caso do Rei Lear.


Em suma, uma pessoa pode sofrer intensamente, mas a intensidade do sofrimento, por si só, é drama e ainda não é tragédia. A pessoa deve também sentir essa poderosa presença de "Algo" a seu lado, antes que seus sofrimentos possam ser genuinamente qualificados de trágicos. Desse ponto de vista, não concordariam que Lear causa uma impressão verdadeiramente trágica, ao passo que Gloucester suscita uma um tanto dramática?


Vejamos agora que sentido prático tal interpretação do estado de espírito trágico pode ter para nós, atores. A investigação é extremamente simples. Tudo o que um ator tem a fazer quando prepara um papel trágico é imaginar, em todo o tempo em que estiver no palco (ensaiando ou, depois, diante do público), que "Alguma coisa" ou "Alguém" está a segui-lo, "Alguma coisa" ou "Alguém" que é muitíssimo mais poderoso do que sua personagem ou do que ele próprio. Deve ser uma espécie de Presença sobre-humana!


O ator deve consentir que esse espectro, fantasma ou aparição atue através da personagem que o inspira. Assim fazendo, o ator não tardará em realizar uma agradável descoberta, a de que não precisa exagerar seus movimentos nem suas falas. Tampouco necessita se enfurnar psicologicamente por meios artificiais ou recorrer a um páthos vazio a fim de conseguir grandeza, as verdadeiras dimensões de um estado de espírito trágico. Tudo acontecerá por si mesmo.


Seu Doppelgänger (literalmente, o sósia), seu fantasma, estando de posse de poderes e sentimentos sobre-humanos, cuidará de tudo isso. O desempenho do ator permanecerá verdadeiro sem se tornar tão confrangedoramente "natural" que perca todo o seu sabor trágico e sem se tornar aflitivamente artificial por causa de excessivos esforços para "desempenhar" naquele estilo grandiloqüente que toda a tragédia exige dele.


A espécie de Presença sobre-humana que o ator pressente numa dada circunstância deve ser deixada inteiramente à mercê de sua imaginação livre e criativa. Pode ser um gênio bom ou mau, feio e vingativo ou heróico e belo; pode ser ameaçador, perigoso, perseguidor, deprimente ou consolador. Tudo depende da peça e da personagem. Em algumas peças, os próprios autores tornaram essas Presenças tangíveis, como as Fúrias nas tragédias gregas, as bruxas em Macbeth, o espectro do pai em Hamlet, Mefistófeles no Fausto, etc.


Mas, sejam indicadas ou não pelo autor, o ator fará bem em criá-las ele mesmo, a fim de sintonizar sua estrutura psicológica naquele tom que o habilitará a interpretar papéis trágicos. Tente fazer essa experiência e verá como se acostuma depressa à sensação de tal Presença a seu lado. Em pouco tempo não haverá sequer a necessidade de pensar nela. Você sentirá apenas que está capacitado para interpretar tragédias com perfeita liberdade e verdade. Jogue livremente com a Presença que inventou; deixe que ela o siga ou o preceda, que caminhe a seu lado ou mesmo voe acima de sua cabeça, de acordo com a missão que quer que ela cumpra.


DRAMA


Mas é tudo diferente quando você vai interpretar uma personagem num simples drama. Nesse caso, o ator deve manter-se inteiramente dentro das fronteiras de seu ego humano. Não necessita imaginar qualquer espécie de fantasma ou aparição. Todos nós estamos mais ou menos familiarizados com esse gênero de atuação. Sabemos perfeitamente bem que, desde que tenhamos preparado a personagem e permanecido verdadeiros, dentro das circunstâncias dadas, está plenamente cumprida nossa tarefa de ator para esse tipo de peça.


COMÉDIA


A comédia, por outro lado, estabelece para o ator algumas condições definidas. Nesse caso, assim como no drama, ele é de novo seu próprio eu interpretando a personagem - com uma característica psicológica predominante que a personagem requer. Essa característica poderá ser fanfarronice para uma personagem como Falstaff, extrema estupidez para Sir Andrew Ague-Cheek, presunção ou arrogância para alguma personagem como Malvólio ou falsa devoção e hiopocrisia para um Tartufo.


Pode ser frivolidade, timidez, amorosidade, covardia, uma alegria ou uma melancolia injustificada, ou qualquer outra qualidade requerida da (e pela) personagem. Mas, seja qual for a qualidade predominante que se escolha para uma personagem de comédia, ela deve ser interpretada com a maior verdade interior e sem a menor tentativa sequer de ser "divertida" para conseguir boas gargalhadas. O humor verdadeiro, o humor de bom gosto só pode ser conseguido sem o menor esforço, com o mais completo desembaraço e por meio de fortes irradiações. Desenvoltura e irradiações são, portanto, mais duas condições para o ator que queira desenvolver uma técnica especial no desempenho de papéis de comédia.


A desenvoltura já foi discutida com mais pormenores em nosso primeiro capítulo. Mas, no que se refere à irradiação, desejo acrescentar que, a fim de se penetrar no estado de espírito próprio da comédia, é preferível tentar irradiar em todas as direções, preenchendo cada vez mais o espaço a nossa volta (todo o palco e até mesmo o auditório) com raios de felicidade e alegria - como faz naturalmente uma criança quando espera ou vivencia algum evento jubiloso!


Mesmo antes de entar no palco, inicie essas irradiações. Poderá ser tarde demais quando você já estiver no palco, porque o esforço poderá distrair então sua atenção do desempenho real do papel. Faça sua entrada em cena com essa vasta aura já reverberando a sua volta. Se seus colegas o ajudarem fazendo a mesma coisa, todo o elenco se encontrará logo envolto numa forte e cintilante atmosfera de comédia, a qual, combinada com a desenvoltura e um ritmo rápido, elevará seu genuíno senso de humor, assim como o dos espectadores. Desse modo você estará dando a plena medida de importância às frases e às situações humorísticas que o autor forneceu, e o efeito cômico será totalmente perfeito.


Assim, vemos que o ritmo rápido é ainda outra condição requerida pela comédia, e também esse ponto precisa ser elucidado. O ritmo rápido, se for uniforme, torna-se inevitavelmente monótono. O espectador tem a atenção entorpecida e, alguns momentos depois, começa a ter a impressão de que o ritmo da performance está ficando cada vez mais lento; como resultado disso, o espectador perde involuntariamente seu interesse nos atores e fica escutando apenas os diálogos.


Para evitar esse desagradável efeito, essa diminuição do significado do ator no palco, o intérprete deve, de tempos em tempos, abrandar subitamente seu ritmo, nem que seja apenas por uma frase ou movimento, ou introduzir ocasionalmente uma curta mas expressiva pausa. Esses meios de quebrar a monotonia de uma performance em ritmo rápido agirão instantaneamente sobre a atenção do espectador, como pequenos mas agradáveis choques. O espectador, assim reanimado, estará de novo apto a deleitar-se com o ritmo vivo da performance e, por conseqüência, a apreciar melhor o talento e a habilidade do ator. E agora algumas palavras sobre o desempenho clownesco.


CLOWN


De certo modo, o palhaço é semelhante e, ao mesmo tempo, o completo contraste do ator trágico. Um palhaço realmente grande e talentoso, tal como um trágico, nunca está só quando desempenha seu papel. Também ele se sente como que "possuído" por certos seres fantásticos. Mas esses são de uma natureza diferente. Se chamamos ao Doppelgänger do trágico um ser sobre-humano, consideremos os acompanhantes humorísticos do palhaço seres subumanos. Ele lhes dá acesso a seu corpo e a sua psicologia. Juntamente com os espectadores, deleita-se com as aparições extravagantes, excêntricas e grotescas desses seres através de si mesmo. O palhaço é um instumento deles, para seu próprio divertimento e o dos outros.


Pode haver um ou muitos desses gnomos, duendes, anões travessos, ninfas ou outra "gente boa" dessa espécie que se apossam do palhaço e nos faz sentir que ele não é inteiramente um ser humano. Mas todos eles têm de ser agradáveis, simpáticos, amorosos, travessos, divertidos (e até eles próprios risíveis!), caso contrário suas palhaçadas tornar-se-iam repulsivas. Devem gostar de seu direito temporário de usar o corpo humano e a psicologia do palhaço para as suas diabruras e truques. Encontraremos material incalculavelmente rico para a criação dessa "gente boa" na literatura dos genuínos contos populares e contos de fadas, capazes de estimular nossa imaginação.


Tenha-se também em mente a importante diferença que existe entre um cômico e um palhaço, um clown. Enquanto a personagem de comédia sempre reage naturalmente, por assim dizer, não importa até que ponto a personagem e a situação possam ser peculiares, ela ainda tem medo das coisas quando essas são assustadoras, ainda se indigna quando a situação requer tal emoção, e é sempre obediente à motivação. Suas transições de um estado psicológico para outro são sempre justificáveis.


Mas a coisa é muito diferente com a psicologia de um bom palhaço. Suas reações a uma circunstância em seu meio circundante são completamente injustificadas, "absurdas" e inesperadas: ele poderá mostrar-se apavorado com coisas que não dão a mínima causa para medo; poderá chorar quando esperávamos que risse ou ignorar profundamente um perigo que o põe em sério risco. Suas transições de uma emoção para outra não requerem qualquer justificação psicológica. Tristeza e felicidade, extrema agitação e completa compostura, riso e lágrimas - tudo isso poderá desfilar em sucessão espontânea e mudar como um relâmpago sem quaisquer razões visíveis.


De maneira nenhuma, entretanto, deve-se inferir que ao palhaço seja permitido ser intimamente falso e insincero! muito pelo contrário. Ele tem de acreditar no que sente e faz. Tem de confiar na sinceridade de toda "gente boa" que trabalha dentro e através dele e tem de amar de todo o coração os jogos e extravagâncias peculiares dessa "gente boa".


Ainda que extrema, a arte do palhaço pode constituir um indispensável acessório para o ator que deseja aperfeiçoar todos os outros tipos de desempenho. Quanto mais a praticar, mais coragem reunirá como ator. Sua autoconfiança crescerá, e uma nova e gratificante sensação emergirá lentamente de seu íntimo. "Ah, como é fácil", dirá você, "interpretar drama e comédia depois dos exercícios e experiências como palhaço!" Também o chamado Senso de Verdade no palco crescerá muito.


Se você aprender a ser verdadeiro e sincero (que é distinto de ser natural, nesse caso) enquanto desempenha truques clownescos, não tardará a descobrir se suas interpretações pecaram ocasionalmente contra esse Senso de Verdade. A arte clownesca ensinar-lhe-á a acreditar em tudo o que desejar. E despertará em seu íntimo aquela eterna Criança que anuncia a confiança e a profunda simplicidade de todos os grandes artistas.


Essas quatro dominantes na escala de diferentes tipos de desempenho são suficientemente fortes para vibrar em sua alma criativa aquelas cordas que de outro modo permaneceriam mudas. Se você tentar exercitá-las todas sem pressa, esforçando-se por vivenciar as diferenças de estados de ânimo e as maneiras de se movimentar e falar que elas lhe inspiram, ficará atônito ao verificar até que ponto suas aptidões podem ser ilimitadas e que grande uso pode fazer, até insconscientemente, dessas novas capacidades de seu talento.


Use, para seus exercícios, pequenas frações de cenas dos três primeiros tipos mencionados de peças teatrais e também alguns truques de palhaço que tenha visto no circo ou inventado. Interprete-os várias vezes, um após outro, comparando sempre suas experiências com cada tipo. Depois, use ou invente qualquer pequena cena indeterminada e interprete-a alternadamente como tragédia, drama, comédia e circo, usando os meios técnicos previamente sugeridos. Muitas portas novas se lhe abrirão para as emoções humanas, e sua técnica de interpretação adquirirá maior variedade.


RESUMO


1. Fica mais fácil interpretar uma tragédia imaginando a Presença de algum ser sobre-humano.


2. O drama requer uma atitude puramente humana e verdade artística em dadas circunstâncias.


3. A comédia requer do intérprete quatro condições principais: ênfase sobre uma característica psicológica predominante da personagem, desenvoltura, fortes irradiações de qualidades alegres e felizes e ritmo rápido entremeado de momentos mais lentos.


4. O desempenho clownesco requer a Presença de seres subumanos alegres e bem-humorados.
_____________________________________


Extraído de Para o Ator, Editora Martins Fontes, São Paulo, tradução de Álvaro Cabral






Nenhum comentário:

Postar um comentário