quinta-feira, 29 de março de 2012

Relações



Odette Aslan


Ator/Autor


          O ator que só ama a si mesmo, que só se preocupa com seu sucesso pessoal, não hesita em modificar uma cena ou um desenvolvimento em proveito próprio. Ainda assim, honestamente pode também ser capaz de efetuar uma sugestão atilada. Antoine, ao saber que Le Bargy desejava pedir a François Curel modificações no papel (pouco simático para o seu gosto) de Charles Merande em L'Amour brode, censurou veementemente o ator por imiscuir-se no que não lhe dizia respeito:


          Os comediantes nunca conhecem nada das peças que devem representar. Seu ofício é representá-las da melhor maneira, interpretar o melhor possível as personagens cuja concepção lhes escapa; na realidade são manequins, marionetes mais ou menos aperfeiçoadas segundo seu talento e que o autor veste e agita de acordo com sua fantasia. Certamente, após longos anos, às vezes adquirem uma espécie de experiência totalmente material, podem dizer a um autor porque uma personagem deve sair ou entrar à direita e não à esquerda, mas em caso algum podem ou devem, sem sair de sua função específica, tentar modificar uma personagem ou um desenvolvimento.


          É claro que os tempos mudaram. No Open Theatre os atores elaboram e os autores remanejam.


Ator/Encenador


          O ator imbuído de sua própria pessoa caminha amiúde contra a corrente da evolução artísitca. Os atores de Stanislavski (no primeiro período do Teatro de Arte de Moscou) ficaram furiosos quando o Sistema lhes foi imposto. O movimento do Cartel, fato só relevante na França de antes da Segunda Guerra Mundial, foi limitado, e malvisto em seu tempo por numerosos comediantes. Os atores do teatro de boulevard zombaram "dessas igrejinhas", desses teatros "carcomidos" em que o ator devia "abdicar de toda a sua personalidade para agradar aos novos mestres e ser apenas um número no todo, como os cenários".


          Em compensação, comediantes de temperamento dócil e um pouco preguiçoso perdem toda a iniciativa, esperam do encenador diretrizes às quais se submeteram de antemão. Giorgio Strehler confiou a Maurice Serrarzin sua angústia diante da apatia dos comediantes modernos. Roger Blin lamentou a obediência passiva dos comediantes alemães com quem trabalhou em Essen (Os biombos).

          Há também a relação sadomasoquista de que fala Grotowski, como também a admiração entusiasta de discípulos de um líder brilhante. Victor Garcia procura fazer com que seus comediantes se apaixonem por ele, entrem em comunhão com seu coração e seu pensamento.


          Na Comédie-Française é costume pagar mais ao ator que também é diretor. Terá esse costume despertado vocações sem o qual não se manifestariam? Sempre houve, na Comédie, um comediante que, como Le Bargy, servia de assistente (anônimo para o público) e ajudava seus colegas a assimilar um papel e fixar uma marcação.

          A posição de ator-diretor a representar ele próprio no espetáculo com seus pares é de molde a modificar sutilmente as relações de autoridade entre as personagens. Nas companhias particulares, quando o encenador dono da companhia faz parte da distribuição de papéis, mesmo que não queira, fica numa posição de constante supervisão em face dos outros intérpretes e estes crêem sentir sempre o seu olhar cravado neles.


Ator/Personagem


          Pode-se estabelecer a atitude do ator em seu ofício e em sua vida de acordo com o fato de ele:


Privilegiar a personagem


Elevar-se até a personagem


Identificar-se com a personagem


Anular-se diante da personagem


Esconder-se atrás da personagem


Mostrar a personagem


Destruir a noção de personagem






          Dessa forma, ele não escolheu apenas uma técnica de atuação, mas se filiou a um comportamento que lhe convém. Conforme o tipo de maquiagem que adotar (sofisticação, aceitação de enfeiar-se, gosto pela transformação, rosto limpo, uso de máscara), ele trai seu narcisismo ou seu desprendimento. Conforme aceite ou não ser dublado nas cenas perigosas, revela a têmpera de seu caráter e a parte de sua vida que pretende doar a seu ofício.


          A tradução da personagem evolui também com a mutação da sociedade. Havia na empatia um abandono poético em ser o outro, compreendê-lo, ser indulgente com o outro, feliz por entrar na compreensão do outro. Simpatizar, sentir junto, dizia Dullin. Experimentar o amor até o mimetismo, dizia Barrault; sentir-se um outro ser humano ou tornar-se vento, árvore, pedra.


          O ator da era científica (Brecht) tem certeza da superioridade da ciência sobre o instinto. Recusa o contato quente, critica, zomba, afasta qualquer tipo de comunicação que não seja a das idéias e não penetra em outro sistema de idéias que não seja o do seu tempo: "A evolução constante da humanidade torna estranho para nós o comportamento de nossos antepassados" (Bertolt Brecht).


          Em certos espetáculos, o ator se funde em uma personagem coletiva. Em outros, destrói a noção de personagem e põe em primeiro plano sua própria pessoa.
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Extraído de O ator no século XX, Editora Perspectiva





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