segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Teatro/CRÍTICA

"As regras da arte de bem viver
na sociedade moderna"

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Divertida crítica ao aprisionamento


Lionel Fischer


Elegantemente vestida e sentada numa poltrona vermelha, uma mulher observa atentamente a chegada do público. Quando este se acomoda, inicia um curioso discurso, que começa abordando o nascimento de uma pessoa (e seu posterior registro em cartório), passa pelo batismo, namoro, noivado, casamento, bodas de prata, bodas de ouro, falecimento, luto e retomada da vida.

Quem é essa mulher? Jamais chegamos a saber. A que época pertence? A dúvida permanece. O que objetiva? Ao que tudo indica, fornecer à platéia um detalhadíssimo plano de ação que deve ser rigorosamente cumprido para que nada abale as relações entre as pessoas, para que nada fira a indispensável etiqueta. Em resumo: uma espécie de manual sobre "As regras da arte de bem viver na sociedade moderna".

O texto, de autoria do francês Jean-Luc Lagarce (1956-1995), é a mais nova empreitada da L'Acte - Atos da Criação Teatral, que desde 1977 tem levado para a França peças de autores brasileiros (Nelson Rodrigues, Plinio Marcos e Roberto Alvim) e que no Brasil tem privilegiado autores franceses como Serge Valletti e Valère Novarina. Em cartaz no Porão da Casa de Cultura Laura Alvim, o presente texto chega à cena com adaptação de Lorena da Silva e Miguel Vellinho, estando a atuação a cargo de Lorena e a direção de Miguel.

Como dito acima, jamais chegamos a saber exatamente quem é a mulher que nos recebe no teatro. Tudo o que sabemos, em função do que nos informa o programa, é que o autor teria baseado seu texto num manual de boas maneiras do final do século XIX da Baronesa de Staffe, e que o mesmo se estrutura em alguns dos muitos rituais católicos. Ainda assim, a dúvida permanece: o que terá efetivamente pretendido Jean-Luc Lagarce ao escrever "As regras da arte de bem viver na sociedade moderna"?

Acredito que muitas leituras possam ser feitas. A minha me diz que o autor pretendeu criticar, de forma implacavelmente metódica e por isso muito divertida, o aprisionamento daqueles que se submetem a todos os rituais que lhes são impostos, que regem não apenas suas ações, mas sobretudo suas emoções.

Estando todas as coisas colocadas em seus devidos lugares, certamente usufruímos uma suposta tranquilidade, posto que nos comportamos exatamente como a sociedade dominante espera que nos comportemos. No entanto, se assim agimos, abdicamos de nossa singularidade, nos tornamos previsíveis e a vida passa a transcorrer isenta de espantos. E uma vida totalmente programada, convenhamos, torna-se mortalmente tediosa.

No tocante ao espetáculo, Miguel Vellinho impõe à cena uma dinâmica austera e despojada, valorizando ao máximo o que de fato importa: o ensandecidamente lógico, sensato, hirariante e verborrágico discurso da elegantíssima conferencista.

Esta é vivida com notável competência por Lorena da Silva, que sabiamente opta por um tom de voz sem maiores oscilações, o que certamente contribui para tornar ainda mais risíveis os espantosos detalhes de cada um dos comportamentos que devem ser adotados, fato que nos remete, ao menos em alguma instância, ao Teatro do Absurdo.

Com relação à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos - Alexandra Moreira da Silva (tradução), Joice Niskier (direção de movimento), Carlos Alberto Nunes (cenografia), Luciana Cardoso (figurino) e Renato Machado (iluminação).

Finalmente, não posso deixar de registrar o fato de Lorena da Silva ter dedicado este espetáculo a Fábio Junqueira, que nos deixou há alguns anos, seu primeiro professor de teatro e com quem viveu uma belíssima história de amor, interrompida quando a morte nos privou do querido ator e diretor.

AS REGRAS DA ARTE DE BEM VIVER NA SOCIEDADE MODERNA - Texto de Jean-Luc Lagarce. Direção de Miguel Vellinho. Atuação de Lorena da Silva. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.
       

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