quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A precisão das falas
e a concretude cênica
em Nelson Rodrigues

Antonio Guedes


          Há sempre muitas maneiras de ler uma peça. É justamente a diversidade de leituras que um texto ficcional possibilita que determina a riqueza de um autor: quanto melhor ele é, mais articulações ele engendra. Um autor torna-se universal na medida em que atinge um grande número de pessoas, vence o tempo e continua a dialogar com o seu público, continua a fazer sentido para além de sua época e de sua cultura de origem.

          Mas, na verdade, esse lugar-comum sobre os clássicos refere-se, em geral, exclusivamente ao sentido da história contada. E Nelson Rodrigues, a partir dessa perspectiva, apresenta, em suas peças, em suas crônicas e em seus folhetins, um manancial de possibilidades de leituras porque se, por um lado, suas histórias têm um aspecto singular, como se só pudessem acontecer com aqueles personagens, por outro lado, dão a impressão de que todos nós ou vivemos ou conhecemos uma história parecida. ..Mesmo se nos prendermos apenas ao sentido das histórias rodriguianas, já encontramos uma infinidade de possibilidades de leituras, associando-as às nossas experiências ou às experiências que conhecemos.

          Entretanto, quando pensamos na importância de Nelson para o teatro moderno - o que imediatamente nos remete a Vestido de noiva - somos lançados em outra dimensão da compreensão da linguagem da cena, nos deparamos com outra maneira de pensar sobre a função da fábula contada no palco. Somos obrigados a olhar para as deliciosas histórias que Nelson conta de uma maneira estrutural, ou seja, para além - ou aquém? - do sentido.

          Vamos tentar entender o que estou chamando de modernidade no teatro. Desde o naturalismo, que considera a cena como o lugar da simulação da imagem do mundo, levanta-se, como seu contraponto, a questão da teatralidade que pensa a cena não como um espaço de representação da realidade, mas como um espaço que se mostra com uma realidade própria. Pensemos na cena de Meyerhold e nos seus cenários construtivistas; lembremos do seu ator e da biomecânica como uma forma de estudar e decupar o movimento do corpo considerado como uma engrenagem produtora de sentidos. Pensemos também na cena proposta por Brecht, uma cena cuja estrutura está exposta, sem ilusionismos, sem mágica, sem truques, trabalhando um ator que se mostra, ora como personagem, ora como suporte de um personagem; ora imagem de uma história, ora articulador dessa mesma história.

          Nas artes plásticas, vamos lembrar de Picasso e de sua necessidade de abarcar a figura em todas as suas dimensões, de dar conta do que a perspectiva linear não dava: expor todas as faces de uma figura. E, como resultado da realização dessa necessidade, temos um quadro que, além de revelar a figura como um todo, revela também o caminho trilhado até aquele resultado, vemos a operação de construção, de realização daquela motivação inicial - abarcar toda a figura -, vemos, enfim, para além do tema, para além (ou aquém?) do enredo, vemos a própria pintura.

          E, apenas para não ficarmos em um único exemplo, vamos pensar em Joan Miró, que construía com pintura jogos de decifração de enredos, enígmas pictóricos que só seriam decifrados a partir do título que se torna indissociável da obra. E, nesses jogos, uma nova função da pintura se apresentava: revelar imagens sem deixar de ser pintura ou, por outro lado, revelar a pintura sem deixar de indicar a possibilidade de haver, ali, uma história.

          A modernidade vai, justamente, problematizar a possibilidade de representar a realidade, chamando a atenção para o que há de mais real na operação artística: o suporte. E vai considerar o enredo tanto como elemento representado pelo suporte, como o enredo, ele mesmo, suporte de sentidos. A modernidade vai, enfim, fazer o caminho de afastamento de uma operação mimética - que criava uma cena que se remetia ao que ela não era, se remetia a algo que não estava REALMENTE ali - para se aproximar de uma cena concreta, uma cena cuja realidade está exatamente ali, no lugar para onde se olha. A modernidade sai de um teatro que se fazia esquecer enquanto tal, para chamar a atenção para a teatralidade do teatro.

           Ângela Leite Lopes costuma se referir a um momento do processo de criação de Vestido de noiva, no qual Ziembinski propõe que Nelson termine a peça no momento em que Alaíde morre. Mas Nelson se recusa, porque a peça não trata apenas da agonia do personagem. O fato de Alaíde morrer não significa que a experiência da cena, a experiência que está sendo proposta, chegou ao fim. E a pergunta é: se não é Alaíde quem deve ser revelada pela cena, o que Nelson quer revelar?

          A história da morte de Alaíde se mostra pela articulação entre a realidade, a alucinação e a memória. A partir desses três planos é que o personagem é revelado. A cena se sustenta, portanto, graças a essa estrutura e, graças ao jogo entre esses três âmbitos da vida, Alaíde é revelada. Vestido de noiva tem, portanto, como núcleo, como fio condutor, a convivência entre esses três planos. Esses planos não são parte dos diálogos, não são objeto do discurso; eles são a própria estrutura da peça. A fábula brota do jogo entre eles. Portanto, são eles que estão além (ou aquém?) da história.

          É como pensarmos na arquitetura do Centre Georges Pompidou. O edifício é o tema, entretanto, sua estrutura é o que aparece em primeiro lugar. Como um prédio eternamente em construção. Um lugar que chama a atenção para o fato de que seu sentido é uma construção. Alaíde é uma construção articulada pelos planos que estruturam sua história, dão sustentação e existência ao sentido do personagem. Com todas as contradições e com todas as idiossincrasias características de um personagem.

          Mas não estaríamos superestimando as intenções de Nelson? Teria ele consciência dessa articulação e da modernidade da sua cena?

          Em 1989, quando ia montar Valsa nº 6, procurei Nelson Rodrigues Filho para conversar sobre os direitos autorais da peça. Ao fim da conversa, ele me disse: "Mestre, atende a um pedido do meu pai: não mexe nas falas, não. Ele sempre dizia que tinha levado muito tempo pra escolher aquelas palavras, que escolheu uma por uma. Então, não mexe nisso, não".

          Então, buscando entender a importância das falas para Nelson, recorro à composição desta fala de Arandir em O beijo no asfalto:

ARANDIR (repetindo para si mesmo) - Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira) Eu sei o que "eles" querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada) Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento) Só pensando no beijo no asfalto! (com mais violência) Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: - se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! "Eles" não percebem que alguém morria?

          Toda entrecortada, essa fala constrói uma aparência de fala cotidiana. E, além disso, tem uma pontuação bem característica: "Quer dizer que. Me chamam de assasino e." Ele não usa reticências, maneira habitual de grafar uma fala interrompida. Mas ele não usa porque a frase não está interrompida, ela termina ali. Não é uma sugestão de interrupção. Esta é a frase. Nelson, construindo a fala dessa maneira, não dá margem a que o ator crie pausas a seu bel-prazer; não permite que o ator acrescente um "que" ou um "mas", como às vezes se faz depois de reticências. Nelson constrói uma fala muito precisa, uma fala para ser dita exatamente dessa maneira. As rubricas dão o sentido da interrupção. Ele compõe nesta fala um ritmo determinado pela notação. E uma entonação, esta, sim, sugerida pela rubrica. Essa escrita é uma partitura.

          Então eu entendi o pedido de Nelsinho para que não mexêssemos nas falas da peça. Ao mesmo tempo, fica evidente o quanto Nelson sabia o que estava em jogo na cena que propunha. Há uma estrutura com a qual precisamos dialogar. Há um sentido na história a ser contada, mas o principal é compreender que, em Nelson, essa história deverá ser revelada a partir de uma estrutura que deve mostar-se como estrutura. Dito em outras palavras, Nelson propõe um jogo no qual é a cena que se conta. A cena rodriguiana não é um veículo a serviço da fábula. É uma estrutura que se mostra como um jogo a partir do qual brotam os sentidos.
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Artigo extraído - e aqui reduzido à sua parte incial - da edição nº 29 da excelente revista Folhetim, que tem como editora geral Fátima Saadi. Antonio Guedes é diretor do Teatro do Pequeno Gesto e professor do Curso de Artes Cênicas da Escola de Belas Artes da UFRJ. 

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