quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Os cegos



de Michel de Ghelderode



Personagens:


De Witte
De Strop
Den Os
Lamprido,o caolho


Cenário: uma estrada em Bracante, perto de uma cidade.


(Soa um canto. Peregrinos vêm pela estrada. É bastante lento o canto, se bem que entoado por homens de boa saúde. Os peregrinos são cegos. Avançam tateando com um bastão e segurando um no outro pela ponta do casaco. Eis o seu canto de marcha:)


Congaudeant catholici
Letentur civis celivi
Die ista


De Witte - Die ista...e agora? Por mim, eu paro! Se a nossa canção de peregrinos agrada a Deus, não comove as pedras do caminho. Meus pés estão sangrando e tenho a garganta seca que nem uma cratera.


De Strop - É preciso parar. Quando um de nós pára, os três devemos parar. E quando um canta, devemos cantar. E quando um anda, andamos os três...que destino!


Den Os - Que destino! Caminhar numa estrada da qual não enxergamos o fim, cantar uma lamentação num latim que não entendemos! Companheiros de miséria, proponho gemer os três, com todas as nossas forças. Talvez nos ouça alguém, lá pelas nuvens ou na terra. Vamos gemer!


Os três (Desafinados) - Miserere! Miserere! Miserere!


Uma voz (Ao longe) - Miserere!


De Witte - Vocês ouviram? (Ouvindo) Mais nada.


De Strop - Parecia que estava ouvindo...É a fome e a sede, a sede principalmente, que nos perturba os sentidos.


Den Os - Eu ouvi! Sabem o que é? Ou é o diabo que faz troça de nós e não responderá, ou então é o eco, que não mente e responde, porque vou provocá-lo, religiosamente.


De Witte - Sim! Cante a missa pra ele.


Den Os (Cantando) - Kyyyyyyyyyyrie.


Os três - Vamos escutar!


A voz (Ao longe, concluindo) - ...RiiEleiison...


De Witte - Está se vendo que não é coisa do diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa um eco de um convento!


Den Os - Se esse eco nos quisesse dar uma esmola ou pelo menos nos arranjar um canecão de cerveja escura!


De Strop - Não percam a esperança! Nosso sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar. Eu sei. Querem ouvir a boa notícia? É que nisso eu enxergo melhor que vocês.


De Witte - Mentiroso duas vezes! Você é o mais cego de nós três! Mas diga de uma vez: qual é a boa notícia?


De Strop - Amigos da minha dor, fiquem sabendo: já não estamos longe de Roma!


Os dois - Oh! Oh! Oh!


De Strop - Não sentiram que o sol ficou mais quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam, ainda agora ouvimos um eco, e um eco que canta missa...Em Flandres, pra falar a verdade, não existe eco: tudo é chato, tudo é plano...Nas montanhas sim, existem ecos. Estamos nas montanhas! E esse pintor que nos pintou faz pouco, o que esteve na Itália, não disse que devíamos atravessar as montanhas? Como se chamava o pintor, aquele esquisitão que nos deu um florim?


De Witte - Acho que era um tal de Bruegel.


De Strop - Isso mesmo: Bruegel! Ele disse que passando as montanhas, já não estávamos longe de Roma.


Den Os - Disse também que podíamos andar sem medo nem receio, que de qualquer jeito acabávamos chegando, porque todos os caminhos vão dar em Roma.


De Strop - Aleluia! Vamos ver a Catedral de São Pedro!


Den Os - Aleluia! Vamos ver o Papa em pessoa, o Papa que nos vai fazer um milagre: dar-nos de novo os nossos olhos!


De Witte - Aleluia! Vamos ver um montão de maravilhas...ou então não veremos nada. O certo é que Roma é a cidade mais maravilhosa da cristandade e que lá beberemos até não poder mais, comeremos à farta e dormiremos e dançaremos...Sei, de boa fonte, que esses romanos são de natural alegres e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos para Flandres. Eu me planto nos degraus da basílica e acabo meus dias ao sol.


De Strop - Eh! Mau paroquiano! Faremos o que o Santo Papa nos mandar fazer.


Den Os - Quem sabe se ele não quer que a gente dê uma chegadinha até Jerusalém?


De Witte - Ou quem sabe, depois de nos ter olhado bastante, nos aconselhe a voltar para o nosso país?


De Strop - Silêncio! Abram depressa os ouvidos! (Ouve-se um carrilhão longínqüo)


Den Os - Agora sim! Sinos numa torre! Os sinos de Roma!


De Witte - Você está doido! É um carrilhão! E toca uma música que eu conheço, uma canção que em nossa terra se canta nos mercados.


De Strop - Vou dizer a vocês a verdade. É o célebre carrilhão de Roma! Como o Papa soube que três peregrinos flamengos estavam chegando, mandou tocar uma ária de Flandres em nossa honra. Vejam só!


Os três (Cantando a ária com o carrilhão) - Lá...lá...lá. (Gritando) Tocai sinos benditos! Tocai para os que vêm de Flandres! Aqui estamos! Viva Roma e suas mil igrejas!


De Strop - Como dói ouvir, em terra estranha, os cantos de nossa velha pátria.


De Witte - Até parece o carrilhão de Bruges, onde nasci.


Den Os - Ou melhor, o do altivo campanário de Gand, minha nobre cidade.


De Strop - E tal qual o de Antuérpia, a riquíssima, onde via a luz do dia...(Choram os três, sem nenhuma harmonia)


A Voz (Ao longe, rindo às gargalhadas) - Ah! Ah! Ah!


De Witte - Escutem! Estão rindo no horizonte! Que nação maravilhosa esta Itália! Enquanto choramos, os ecos riem para os anjos! Vamos rir também! (Os três riem)


De Strop - Este humor é que é admirável. Contemplem estes altos cimos nevados, donde vamos descobrir as cúpulas e os campanários da Cidade Eterna.


Den Os - Antes de mais nada, sintam esses perfumes estranhos. As flores têm cheiro de incenso, garanto.


De Witte - E vejo num relógio de sol que é tempo de a gente se pôr a caminho. Caminhemos e cantemos. Quem vai na frente: eu! Quero ser o primeiro a entrar na cidade mística.


Den Os - Serei eu! Nisso vejo melhor que vocês.


De Strop - Por que não eu? O menos cego dos três?


Den Os - Vamos! Seguremo-nos pelo casaco e batamos os cajados em cadência! (Caminham e cantam)


Os três - Plenus pulchris carminibus


Studest atque cantibus


Die ista.


A Voz - Die ista...


De Witte - Alto! O eco já não tem a mesma voz. Em que ponto cardial está agindo?


De Strop - Será que estamos voltando, em vez de ir para Roma?


Den Os - Seria terrível! Acho bom interrogar o eco. Já que ele sabe latim, deve saber geografia. Eu me incumbo disto. (Solenemente) Senhor Eco, digne-se a responder a três cegos que procuram o seu caminho. Onde está, Eco sutil?


Voz de Lamprido - Numa árvore da qual descerei para ser-lhe agradável. Sou uma voz que tem patas e chegarei até vocês.


De Strop - Bem que eu pressentia, é um homem! Tanto melhor, ele nos dará esmola.Vejo-o que vem chegando: é um grandalhão de chapéu redondo.


De Witte - É pequeno de chapéu quadrado.


Den Os - Calem-se. É um grande que ficou pequeno, porque é corcunda, nem mais nem menos, e o chapéu dele não passa de um boné cheio de medalhas!


Lamprido (Entrando) - Aqui estou, minha gente.


Os três (Tomando ares de mendigos e salmodiando em falseta) - Aqui está o bondoso cristão. Tende piedade de pobres ceguinhos, grandes pecadores; piedade de calamitosos peregrinos, peregrinando neste vale de lágrimas!


Lamprido - Piedade tenho de cegos pecadores peregrinando.(Ri)


Den Os - Por que se ri? (Furioso) Quem é você?


Lamprido - Sou Dom Lamprido, rei do país dos fossos, homem sábio que fica pendurado numa árvore em vez de caminhar tolamente para uma Roma onde vocês jamais chegarão. Pedem esmola? Vou dar-lhes maçãs, pêras, ameixas, pêssegos, mel, ovos de pato.


De Strop - Nada disto! Queremos dinheiro!


Lamprido - Não o terão, mas posso dar-lhes conselhos e minha ajuda, que é certamente do que vocês precisam.


De Witte - Não precisamos nem de ajuda, nem de conselhos! Por mais cegos que sejamos, os três juntos enxergamos bem claro.


Lamprido - Orgulhosos! Sabem vocês em que lugar estão?


De Witte - Sabemos! Estamos nas altas montanhas, no limiar da campanha romana!


Lamprido - Pois sim! Então escutem!


Den Os - Sim, sim...somos cegos, não surdos. É o carrilhão de Roma!


Lamprido - Incoerentes! Estão no país dos fossos. É preciso acreditar em mim, porque, sendo caolho, tenho a vantagem de ver com um olho; mas um só olho basta. Há muitos cegos no país dos fossos, onde sou rei, eu, caolho clarividente.


Os três (Com arrebatamento) - Ih! Ih! É um aleijado...Ah! Ah!...E diz que é clarividente! Eh! Eh! E acha que não estamos perto de Roma!


Den Os - Vai-te embora, rei caolho! Não queremos saber de ti! És um farsante e teu país de fossos não existe! Nossos longos cajados têm olhos e nos descrevem o aspecto das campinas. Sai daqui ou te batemos!


O outros dois - Vamos dar nele, sim! Arre...(Os três dão cajadadas em todas as direções)


De Strop - Quem me bate?


Den Os - Assassino! Você está batendo em mim


De Witte - Estão me dando pancadas! Acudam!


Lamprido - O trágico engano! Batem uns nos outros e se desancam! Batam com vontade, meus ceguinhos! Mas...o que? Pararam? Sim, sejam pacíficos. Agora escutem: vou fazer-lhes uma caridade.


Os três - Tende piedade dos pobres ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados!


Lamprido - Nem um vintém, nem um tostão roído. O hálito de vocês me diz que adoram pinga. Ouçam-me: vou caridosamente desviá-los da desgraça iminente (Silêncio. Os três escutam boquiabertos) O sol vai se pôr, as brumas sobem, violáceas...Há semanas que os vejo passar e repassar por estes caminhos que de maneira alguma levam a Roma. Vocês não deixaram o Brabante, e os sinos que ouvem são os da torre de São Nicolau, de Bruxelas. Pela minha única vista, descubro daqui os muros da cidade, as torres de Santa Gudula e o famoso São Miguel Guerreiro, todo dourado em cima da flexa da sua torre de pedra...


Den Os - É feio caçoar de três miseráveis que não enxergam!


De Witte - Está mentindo para nós. Já faz semanas que deixamos os Países Baixos!


De Strop - Tome cuidado, Lamprido! Você é um malvado! Denunciaremos você ao Papa...Compadres, não será algum bandido de estrada que vai cortar nossos tornozelos?


Lamprido - Pela última vez lhes digo: estão no país dos fossos e a estrada é toda cheia de pântanos e prados inundados. Um passso em falso e desaparecerão! Dentro em pouco descerão as trevas. Vou tomá-los pela mão e conduzí-los ao refúgio da abadia, onde passarão a noite. Eis uma oportuna caridade e a única que eu quero fazer...


De Witte - Acabemos com isto! A caminho! Deixemos esse velhaco com seus disparates!


De Strop - Embora cegos, temos dignidade! Acha que vamos aceitar auxílio de um caolho? Havemos de entrar em Roma, esta noite ainda!


Lamprido - Pois vão! Entrem em Roma! Mas tenham o cuidado de, antes, recomendar suas almas e seus corpos à Providência! Cem vezes cegos aqueles que não querem acreditar no caolho. Todos os caminhos levam à morte. É ainda uma vaidade entre todas, querer bem ao próximo...prossigam!


Os três - Caminhemos.


De Strop - Adeus, caolho! E obrigado pela esmola!


Den Os - Adeus, rei dos fossos, rei das rãs e dos batráquios!


De Witte - Adeus, eco asneirante! Trepa de novo na tua árvore e praga as corujas! Chegou a nossa vez, amigos. Pra adiante! E segurem o meu casaco.


Den Os - Eu seguro o casaco, segure o meu. Quem vai à frente?


De Strop - Para o Oriente. Direto!


Lamprido - Vocês então indo para o Ocidente! Direitinho para a lama fétida, para o nada. Sigam!


Os três - Honra aos gloriosos peregrinos de Flandres! (Avançam e o canto ressoa) Haec est dies laudabilis. Divina luce nobilis (O canto se interrompe)


Vozes dos cegos - Socorro! Não me empurrem! Não me puxem! Lamprido? Socorro! É a água! Misericórdia! Estou afundando...eu me afogo! Jesus! Salvai-me! (Gritos ainda e as vozes se extingüem)


Lamprido - Nada posso fazer por eles! Os fossos são tão profundos...Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o seu caminho! Dencansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo mortal é formado. A noite avança. Vou ganhar de novo a minha árvore, onde, entre os pássaros adormecidos, rezarei por vossas almas. Cegos, pobres ceguinhos. Amém!


(Sai. O carrilhão soa alegremente nos confins do crepúsculo)


FIM
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Texto traduzido por Aníbal M. Machado






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