quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

CENAS

As cenas que se seguem foram extraídas do texto "Lembranças e desejos", de minha autoria e encenado por mim e por minha filha Julia Stockler no Tablado, em janeiro deste ano, com a turma de 2011. (LF)


PATINS



(No palco, apenas um par de patins. Depois de um tempo, entra o Narrador)

NARRADOR – Eu tinha 10 anos e a coisa que eu mais queria ganhar naquele Natal era um par de patins. Mas meus pais eram muito pobres e eu não quis pedir. Mas não sei como eles adivinharam e quando eu cheguei na arvorezinha que eles armaram na sala...


MENINA (Surgindo) – Meus patins estavam lá! (E começa a colocar os patins) 


NARRADOR – Quer que eu te ajude?


MENINA – Quero. (O Narrador a ajuda) 


NARRADOR – Você já andou de patins alguma vez?


MENINA – Nunca.


NARRADOR – Não tem medo de levar um tombo?


MENINA – Não. (Já de pé, auxiliada pelo Narrador) Eu sei que eu vou cair algumas vezes...talvez me machuque um pouquinho...mas eu vou aprender!


NARRADOR – Claro que vai. (Ambos saem de cena)


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COLÉGIO


PROFESSORA – E então? Todos fizeram a pesquisa sobre os múltiplos significados da palavra “Preguiça”, estando incluso o animal que atende por este singular nome?


ASTOLFO – Eu fiz.


PROFESSORA – Ninguém mais? Pois então, Astolfo, diga três sinônimos da palavra Preguiça.


ASTOLFO - Negligência. Indolência. Mandriice.


ALUNO 1 – Como é que é?


ALUNO 2 – Que porra é essa de mandriice?


PROFESSORA – Atenção para o vocabulário! Por favor, Astolfinho.


ASTOLFO – Posso explicar citando uma obra?


PROFESSORA – É claro.


ASTOLFO – “Estirado no fundo da igaraté, sobre um tupé macio, cruzara os braços e as pernas numa regalada mandriice”.


ALUNO 3 – Quem que escreveu isso?


ASTOLFO – Inglês de Sousa.


ALUNO 4 – Qual que é o livro?


ASTOLFO – “O missionário”. Páginas 293/294.


ALUNO 5 – E aí, galera? Pode?


PROFESSORA – Pode. De Astolfinho podemos sempre esperar o melhor.


ALUNO 6 – Desculpa, professora, mas esse missionário era viado.


PROFESSORA – Olha o vacabulário!


ALUNO 6 – Só pode ser. Por que um cara macho ia se estirar numa...como é que é?


ALUNO 1 – Igaraté.


ALUNO 6 – Pois é. E depois montar num tupé macio?


ALUNO 2 – Só se fosse chegado numa rola!


PROFESSORA – Por favor, é a última advertência que faço no tocante ao vocabulário!


ALUNO 3 – Piroca serve?


PROFESSORA – O senhor se retire imediatamente da sala! (O Aluno 3 sai)


PROFESSORA – Prosseguindo. Me dê agora um sinônimo objeto.


ASTOLFO – A corda dos guindastes.


PROFESSORA – Outro, meu querido.


ASTOLFO – Pau a que estão pregadas as cangalhas da canoura!


ALUNO 4 – Cangalhas?


ALUNO 5 – Canouras?


ALUNO 6 – Mas que merdas são essas?


PROFESSORA – Fora! (O Aluno 6 sai) Pelo jeito, a classe vai acabar ficando vazia...Enfim...E agora, meu querido, me fale sobre o animal Preguiça.


ASTOLFO – Designação comum aos mamíferos desdentados da família dos bradipodídeos, arborícolas de pelagem muito densa e longa, membros muito desenvolvidos...


PROFESSORA – Eu não acredito!


ASTOLFO – E cauda rudimentar, assim chamados pela notável lentidão de seus movimentos.


PROFESSORA – E quanto aos pelos?


ASTOLFO – Entre eles vivem carrapatos e microlepidópteros, mais conhecidos como traças. (Toca o sinal. A Professora sai. Astolfo se vira. Agorta está no pátio do colégio)


ALUNO 1 – Tu é chegado a uma cangalha, cumpadi?


ALUNO 2 – Ou prefere uma canoura?


ALUNO 3 – Tá a fim de se esticar numa igaraté?


ALUNO 4 – Ou prefere um tupé macio?


ASTOLFO – Colegas...por favor...eu apenas fiz o dever de casa!?


ALUNO 5 – Pois agora nós vamos fazer o nosso!


ALUNO 6 – O Dever do Pátio! (BO)


 
EXPULSÃO DO GRUPO


DIRETOR – O que é que você esperava? Fazer a protagonista?


MULHER – Eu esperava que você me desse realmente uma chance. Já é a terceira peça que a gente faz junto e...


DIRETOR – Poderia ser a trigésima! Nesse grupo você vai fazer sempre figuração...cenas de conjunto...às vezes, quem sabe, com uma ou duas falinhas...mas nada além disso.


MULHER – Mas por quê?


DIRETOR – Porque você não tem nenhum talento!


MULHER – Isso não é verdade!


DIRETOR – É sim! Você não tem presença, não tem carisma, não tem voz, tudo que você faz não convence! Você é completamente inexpressiva!


MULHER – E a Roberta, a Fernanda, a Gláucia...que estão sempre fazendo os melhores papéis...elas têm tudo isso que me falta?


DIRETOR – É óbvio! Por isso se revezam nas protagonistas...


MULHER – Elas se revezam é na tua cama!


DIRETOR – Como é que é?


MULHER – Você pensa que eu não sei que elas dão pra você?


DIRETOR – Você está louca!


MULHER – Louca eu estava quando acreditei em você! Será que você já se esqueceu de tudo que me disse depois de fazer um teste comigo?


DIRETOR – Isso já tem dois anos. Não me lembro de nada.


MULHER – Você disse que eu tinha talento e que apenas precisava ganhar mais experiência. E que logo eu cresceria dentro do grupo.


DIRETOR – Se eu disse isso, estava “chapado”...


MULHER – Ah, e disse também que era muito importante eu ser uma pessoa “aberta”...só agora eu estou sacando o que isso significa...


DIRETOR – Escuta aqui: esse papo morre agora! Você está fora do grupo!


MULHER – Eu ia sair mesmo...


DIRETOR – Mas que ótimo! E aproveita e volta pra faculdade de arquitetura! Quem sabe, no futuro, você não consegue projetar umas casinhas...?


MULHER – Você é muito escroto!


DIRETOR – Eu até prometo rezar todos os dias pra que Deus não permita que as tais casinhas desabem...


MULHER – Vai se fuder!


DIRETOR – Tchau, medíocre...


MULHER – Babaca!!!

 
TENTATIVA DE SUICÍDIO


MENINA – Fazia muito frio lá em cima, no terraço do meu prédio...ventava muito...eu estava com o cabelo solto e ele toda hora tapava meu rosto. Então eu prendi meu cabelo...fiz um rabo de cavalo...porque eu queria ver...queria ver com toda clareza a rua lá embaixo...já estava quase amanhecendo...quase todas as luzes dos apartamentos próximos ainda estavam apagadas...as pessoas dormiam...descansavam...daqui a pouco deixariam suas casas...iriam para o trabalho...ou pro colégio...ou pra onde quer que fosse...mas eu...eu não iria mais a nenhum lugar...essa seria a última vez que...eu queria que o sol nascesse logo...porque eu tinha decidido...não sei por que...tinha decidido que só me jogaria lá de cima quando a noite fosse embora...talvez pra ver...não sei...talvez pra sentir melhor a sensação da última queda...da queda final...daquela que iria me livrar, de uma vez por todas...daquela angústia que eu sentia...que eu nem sabia definir direito...que ninguém nunca conseguiu definir direito...mas que eu já não suportava mais...enfim...o sol começou a nascer...eu subi no parapeito do terraço sem nenhuma hesitação...mas quando ia saltar aconteceu...aconteceu uma coisa absolutamente inesperada...um bando de gaivotas, surgidas não sei de onde...passou bem diante de mim, a poucos metros de onde eu estava...eu levei um susto, me desequilibrei e...caí de costas no terraço... Eu tive a impressão de que havia me machucado muito...então eu comecei a chorar...eu resolvi chorar...mas depois de um tempo comecei também a rir...porque eu percebi que essa dor, ao contrário de todas as outras...essa dor era concreta...eu sabia a sua origem...e se quisesse poderia enfrentá-la...quem sabe fazer com que ela diminuísse um pouco...e se eu conseguisse isso, talvez...foi exatamente isso que eu pensei...talvez fosse possível ao menos tentar enfrentar todas as outras dores...aquelas que me subjugavam...que me pareciam estranhas, mas que talvez não fossem tão estranhas assim...talvez fossem até bem familiares...eu não sei...sei apenas que naquele momento...exatamente naquele momento...me deu uma vontade irresistível de viver...de ser feliz...de...




ARANHAS


A1 - Eu te juro, amiga: agora é pra sempre!


A2 - Nada é pra sempre: só os diamantes e o Tablado.


A1 - Eu nunca mais entro nesse tipo de roubada.


A2 - Que roubada?


A1 - Essa história de ser apresentada a alguém que, supostamente, tem tudo a ver comigo.


A2 - E você conheceu quem? Quando? Onde?


A1 - Antonio Henrique, ontem, na casa da Francisca, uma colega do escritório. Ela resolveu dar uma festinha supostamente para comemorar uma promoção que ela acabou de receber.


A2 - Você adora essa palavra: supostamente.


A1 - Algum problema?


A2 - Nenhum. Continua.


A1 - Mas o que ela queria mesmo era me arranjar um namorado.


A2 - Namorar é legal.


A1 - A Francisca cisma que eu tô infeliz porque tô sem namorado e vive tentando me arranjar um.


A2 - Mas você tá mesmo infeliz desde que o Astolfo assumiu que era gay e se foi.


A1 - Tudo bem. Mas isso não quer dizer que a cada semana eu tenha que conhecer um cara e muito menos achar que esse cara...


A2 - Quem era o cara?


A1 - Um tal de Eurípedes.


A2 - Dramaturgo?


A1 - Não, zoólogo.


A2 - Poxa, que legal. Um zoólogo...


A1 - Legal por quê?


A2 - Ah, sei lá...é outra cabeça, outro tipo de papo.


A1 - Pois é. E foi justamente o papo que me aterrorizou.


A2 - Te aterrorizou? Como assim?


A1 - O cara é especializado em aranha.


A2 - Em aranha? Pô, amiga, chocante!


A1 - Por que “chocante?”


A2 - Sei lá...pô, aranha é um puta símbolo!


A1 - Do quê?


A2 - Sei lá...mas aquele monte de patas...aqueles olhões...


A1 - Aranha não tem pata, tem perna.


A2 - Mas tem olhão.


A1 - Tudo bem: tem olhão. Mas deixa eu continuar.


A2 - Continua.


A1 - Assim que nos apresentaram, o Eurípedes começou a falar nos aracnídeos.


A2 - Como assim?


A1 - Aracnídeo e aranha são a mesma porra.


A2 - Que legal...eu não sabia.


A1 - E é aranha pra cá, aranha pra lá. Porque as aranhas fazem isso, deixam de fazer aquilo...


A2 - E você?


A1 - Eu nada, só ouvindo. Eu não entendo merda nenhuma de aranha!?


A2 - E aí? Quando foi que brotou o impasse?


A1 - Quando o Eurípedes falou da aranha saltadora.


A2 - Ué...tem aranha que salta?


A1 - Tem uma que salta pra cacete.


A2 - Que legal...


A1 - O Eurípedes falou que essa espécie é capaz de saltar tipo uns quatro metros e antes que eu pudesse fazer qualquer tipo de comentário...


A2 - E você ia dizer o quê?


A1 - Eu não sei, mas poderia mandar pelo menos um “nossa”, um “não acredito”, um “não é possível!?”, nem que fosse por educação, para mostrar um certo interesse, já que olhos dele brilhavam de paixão.


A2 - Por você!


A1 - Não, por essa merda dessa aranha saltadora!


A2 - Entendo.


A1 - Aí o Eurípedes olhou no fundo dos meus olhos, como se pretendesse me declarar amor eterno, segurou minhas mãos com sofreguidão e disse o seguinte: “Se você, enquanto ser humano, tivesse proporcionalmente a mesma capacidade de saltar dessa aranha, você conseguiria pular por cima de dois jumbos enfileirados! Já pensou?”


A2 (Após longa e profunda pausa) – E você...pensou?


A1 (Após longa e profunda pausa) – Pensei...


A2 - E respondeu o quê?


A1 - Respondi com uma pergunta.


A2 - Que pergunta?


A1 - Eu disse: “Eurípedes, você já leu Quintana?”



ADEUS


MULHER - As minhas mãos tocam o teu corpo. Sei que elas estão frias. Mas o teu corpo também está gelado. Sei que você sabe disso. Sei que você nota. E no entanto eu continuo a te acariciar. E você continua a fingir que não percebe. Por quê?


HOMEM - A minha boca está crispada. E há nela mais ódio do que amor. Sempre brinquei dizendo que teus seios eram dois magníficos peixes que saltavam e que eu amava capturá-los com doçura. Agora, tão perto deles, tendo-os ao meu alcance, fugiu de mim a antiga ternura e eu me preparo, como uma fera, para capturá-los com violência. Por quê?


MULHER - Eu me volto apenas por não suportar a visão do teu rosto de vidro que se debruça sobre mim. Os teus olhos, que se transformaram em duas luzes ocas. Que não refletem mais os meus. Que não são mais os teus. Se ao menos os teus dentes se convertessem em punhais de prata e fossem corajosos para ir até o fim. Sim, acabar de uma vez com essa estranha dança, que não precede o orgasmo, mas a morte.


HOMEM - Os nossos corpos são duas cidades mortas. São caminhos gastos que percorremos arrastando nossas próprias vidas e que conduzem a nada. Eu me sinto demente. Bêbado. Miserável. E a minha loucura e embriaguez são cada vez mais intensas e incontornáveis. Eu já sinto o abismo sob os pés e eles tremem de pavor. E no entanto...


MULHER - Eu olho à nossa volta e me apavora que sejamos a regra e não a exceção. Se fosse o contrário, não seria difícil te dizer adeus ou você a mim. E recomeçar tudo. Mas todos se arrastam como manequins, impregnados de cera e encharcados de morte. Como se todos fossem portadores de um tumor cerebral.


HOMEM - Há em nós sinais de uma grave doença. Talvez incurável. Fabricada com a nossa aquiescência. E todos somos portadores dessa peste. Nós geramos nossa própria ruína...assistindo a esse desfile de mãos crispadas, é possível...mas permitindo que o cortejo desfilasse.


MULHER - Nós permitimos que o nosso destino nos escapasse. Tudo o que nós criamos nos fugiu, adquiriu vida própria e hoje caminha sem sentir a nossa falta. Acima da minha vontade ou da tua, existe uma outra, superior a todas as demais: a vontade do mundo. Do mundo organizado. Civilizado. Que nos massacra impiedosamente dando a entender, no entanto, que só nutre a nosso respeito uma terna indiferença.


HOMEM - Estamos juntos, aqui, há tão pouco tempo e eu já me sinto esgotado. Aguardando com ansiedade o teu grito angustiante, que nos autorizará o silêncio e o esquecimento. Nós tombaremos, cada um para um lado. Ficaremos calados. E daremos a impressão, um ao outro, de que procuramos manter, com a imobilidade de nossos corpos, o imenso prazer pouco antes obtido. Mas estaremos mentindo. Que importa? Silêncio é sabedoria.


MULHER - Já é hora. Sinto pela milésima vez esse grito que me sobe. E que não me significa mais nada. Um dia, talvez, ele tenha sido de prazer. Hoje é de angústia. Não, não acredito que despreze esse amigo exausto que suaviza com seu corpo o peso do meu. Não. Eu apenas não sei mais o que significa essa palavra: amor. O que é?




RÉQUIEM


INQUISIDOR - Para que haja ordem é necessário a um homem, na iminência de cometer uma ação que mereça a forca, ter consciência de que a forca o aguarda.


ATOR / CORO - É bem provável que nenhum de nós se encontre na iminência de cometer uma ação que mereça a forca/ É quase certo que nenhum de nós se encontre na iminência de cometer qualquer tipo de ação/ Mas independentemente do que nós façamos ou deixemos de fazer, a forca continuará a existir/ E o que é pior: talvez ela não seja mais um mero instrumento, mas tenha se transformado na própria ordem.


RÉU - Estejam certos, meus senhores, de que essa condenação me absolve. O meu caminho termina aqui. Hoje. Não por acidente ou doença, mas porque eu vivi. E isso me conforta. Estejam certos, meus senhores, de que não há destino que não se transcenda pelo desprezo.


JUIZ - O réu, mediante o desprezo, transcende seu destino.


RÉU - Não apenas o réu. Todos podem fazê-lo.


JUIZ - Não apenas o réu transcende seu destino mediante o desprezo como todos os demais podem igualmente fazê-lo.


RÉU - Sim, podem! Poderiam...mas na realidade ninguém se interessa pelas opiniões dos outros. Nós somos sós. Terrivelmente sós. As nossas mãos nasceram cansadas. O nosso gesto, preguiçoso. A nossa ajuda, tardia.


JUIZ - Essa lamúria deve ser anexada ao processo como uma espécie de arrependimento?


RÉU - Eu não falava com os senhores. Seria perda de tempo. Falava comigo.


INQUISIDOR - E é exatamente por isso que você está aqui. Você foi surpreendido monologando em voz alta. Foi lhe perguntado se você era um ator: você disse que não. Foi lhe perguntado se você era um louco: você disse que não. Depois dessa atitude, só lhe restaria a loucura ou a arte. Você não se enquadrou em nenhuma delas. Portanto, você morre. Por demonstrar-se incapaz de se auto-definir.


RÉU - É curioso o julgamento humano. Não permite a uma pessoa travar diálogos consigo própria: ou é louca ou está representando. Mas pode ser que um dia passem a considerar a loucura como uma forma de representação. Aí, talvez, nós possamos monologar em voz alta, livremente, em paz como a nossa solidão, num mundo repleto de atores.


ATOR/ CORO - É o que nós somos/ Fantoches de um espetáculo violento e absurdo, no qual nos envolvemos e que nunca chegamos a compreender/ Viver é se adaptar/ O silêncio, a opção de sobrevivência/ Todos se calam e sobrevivem/ Todos aceitam e sobrevivem/ Todos compactuam e sobrevivem/ Transformam-se em carcaças arruinadas e pestilentas/ Mas sobrevivem/ Com lama até o pescoço, mantêm limpas as unhas nas pontas dos dedos/ E se sentem felizes/ E se sentem em paz/ Pois sobrevivem.


RÉU - Eu me confesso culpado e aceito de bem grado qualquer tipo de castigo. Me confesso culpado de haver me fartado das pesadas condições impostas. Me confesso culpado de ter enfiado as mãos no lodo, de ter me atirado no fundo do poço. De ter sido alguém cuja vida não foi mais que uma procura. Me confesso culpado de haver tentado ser otimista num mundo amargo. De ter buscado o sorriso e encontrado o silêncio. De haver estendido as mãos e agarrado o vazio. De ter fechado os olhos e sentido medo. Sim, reconheço: sou culpado. Eu rasguei os invólucros. As máscaras que vocês tentaram colar no meu rosto não aderiram e a visão de minha face descoberta se tornou insuportável. Sim, sou culpado de um dia ter dito que mais verdadeiro que o intercâmbio de falas é o contato das mãos. Sou culpado de confessar que não me esquecia das flores somente porque eram belas, mas sobretudo por seu perfume. Sou culpado de tentar sentir o mundo de modos diferentes, de procurar a felicidade transgredindo seu conceito. Sim, eu me confesso culpado...E se houvesse tempo, meus senhores, eu me transformaria num rinoceronte. Mas é tarde. Tarde demais para se inventar uma nova atitude. O mundo é um jogo de cartas marcadas. Sempre existirão jogadores desonestos. E sempre haverá quem embaralhe e distribua a sorte...

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