sábado, 28 de janeiro de 2012

A busca da personagem


Odette Aslan




          Descrevemos um movimento de gangorra: o ensino tradicional francês pondo a arte de dizer em primeiro plano, o ensino Copeau-Dullin começando pela improvisação e pelo trabalho corporal. Para interpretar a personagem, não há teoria alguma nem nestes nem naqueles. Podemos apenas recolher anotações diversas a respeito dos problemas que nos propomos.


DISTRIBUIÇÃO DE PAPÉIS


          Ao nível da distribuição, deve-se escolher, para interpretar uma personagem, um ator do mesmo tipo emotivo (colérico, fleugmático etc.)?. Possuindo as mesmas qualidades fisiológicas e morfológicas de sua personagem, o comediante experimentaria mais facilmente suas emoções. Lucien Guitry dizia não haver nacessidade de formar atores, é só "pegar", tais como são, as pessoas que correspondam às personagens que se procuram.


          Emile Dars e J.-C. Benoit criticam a tendência de escolher um comediante revoltado, agressivo, para "interpretar personagens que revelam as mesmas particularidades de caráter: o ator experimenta com isso profundo mal-estar, às vezes dificilmente tolerável". Temem que o papel afunde o comediante em algumas de suas tendências e preferem que desempenhe papéis inteiramente diferentes de sua natureza.


          Se na prática um comediante é escolhido em função de um traço muito particular de sua morfologia ou de seu temperamento, ocorre também que atua ao contrário, numa disposição oposta, para enriquecer o colorido da personagem. Qualquer esforço de um ator para se aproximar de uma personagem distante dele é salutar. A arte se apóia na dificuldade de subir e progredir.


          Como o ator encontra sua personagem? Mais por intuição do que por dedução, diz Dullin, confessando estar à mercê do acaso: o traje fez com que ele encontrasse Baldovino de La volupté de l'honneur; um chapéu, o papel de Auguste em Atlas-Hôtel, de Salacrou; o que não quer dizer que não trabalhe enquanto espera o toque que dará a procurada centelha de vida. Rumina idéias, incuba o texto, ensaia com seus parceiros, compõe a maquiagem.


          Françoise Rosay conta muito com o traje para encontrar o estado de alma favorável ao papel. Pierre Fresnay vê em sua imaginação a personagem desenhar-se. Ele próprio se apega cada vez mais, se esvazia para que a personagem se instale, imponha "sua voz, seu sotaque, seus gestos, seu andar e até seus tiques".


          Trata-se de uma abordagem empírica. Cumpre descobrir a fórmula do "Abra-te-Sésamo". Le Vegan, dizia com muito acerto Jouvet, rodava "ao redor de sua personagem como um cão faminto em volta do osso" - representava um bêbado em Au grande large, de Sutton Vanc. O ator inglês Donald Pleasense se serve de animais, de pássaros; para moldar seu papel de Gardien (peça de Pinter), disse ter pensado num gato no telhado.


          E existem os que ficam em estado de graça: Ludmilla Pitoëff, Yvonne de Bray, e outros tantos casos rebeldes à análise. Admirou-se a sua capacidade de viver em cena, de encarnar personagens diversas com facilidade aparente e quase em segundo estado, exercer uma fascinação que impunha suas criações de pronto.


          Certamente Gérard Philipe aproveitou o ensinamento de Georges Le Roy no Conservatório: "Ele me ensinou a me conservar de pé, ereto, o jarrete tenso, diante da vida, como um homem de verdade. Foi graças a ele, sem dúvida, que pude recitar as estâncias do El Cid mais tarde". Mas ninguém o ensinou a improvisar, a inventar na vida amigos imaginários, cujas aventuras ele contava e mimava incessantemente.


          Todos os que tiveram contato com ele constataram em sua atuação um fenômeno que não podiam explicar: repetia minuciosamente nos ensaios, como um artesão atento, e em cena parecia improvisar, cada noite de modo diferente em certas passagens (monólogo do Cid ou a cena do Príncipe de Hamburgo, na prisão). Ele "era" Rodrigo, "era" o Idiota, e o músico Maurice Jarre, que dirigia a parte musical dos ensaios e representações do TNP, mesmo conhecendo de cor sua interpretação, cada noite se submetia a uma espécie de sensação magnética, cujo mecanismo não podia demonstrar.


REFLEXÃO SOBRE A PERSONAGEM


          O que é, de fato, a personagem? Nada palpável, definido. O problema do ator não é imitar, nem se identificar com "alguém", a personagem não existe, biologicamente falando. É talvez mais uma "idéia de personagem". Às vezes é vaga no pensamento do autor, imprecisa na do leitor e pouco clara na do ator. É um retrato-robô que se fixa diferentemente segundo cada testemunho.


          Com freqüência, durante a escrita, não é para o autor mais do que um portador de idéia, sem corporalidade. Ora, ao nível da distribuição de papéis, o encenador deve "ver" fisicamente a personagem. Mesmo se um dos elementos físicos obrigatório aparecer nas rubricas, a margem continua grande para a imaginação do encenador e do ator. O que é verdadeiro para o físico também é válido para outros aspectos. Cada um toma da personagem somente os traços que lhe interessam, de acordo com a utilização que ele quer fazer dela. Suporte para a imaginação, a personagem também é suporte para todas as explorações, daí as inumeráveis variantes e deformações.


          Acredita-se ter "agarrado a personagem" no momento em que ela se cristaliza, durante uma representação cênica. Ela existe de algum modo em um ponto de junção situado algures entre o palco e a platéia, lá onde se fundem a projeção do comediante e a representação mental do espectador. Na platéia, cada noite, projetada por um comediante, haverá quase tantas personagens quanto espectadores.


          O comediante pode tentar uma aproximação mais do que uma realização. O problema da encarnação, da busca da personagem, foi amiúde tema de meditação para L. Jouvet: o comediante se desencarna, fica vazio, na expectativa; o papel é uma montagem no oco, uma trama, o comediante sonha com o papel, seu sonho "animal" o conduz à fonte de escrita, ao estado em que Racine estava ao dizer: "Minha tragédia está pronta, só me resta escrevê-la".


          O que é a personagem para Jouvet? "Aquele que queremos persuadir os outros que somos", e ainda, não sempre: "Às vezes a personagem é mais clara para o público do que para si". O que o ator projeta para além da ribalta e que, aliado à recepção do espectador, produz uma personagem, nem sempre é legível em sentido contrário pelo comediante. Lembre-se da tirada de Maurice Donnay: "O autor sonha uma peça, escreve uma segunda, os atores representam uma terceira e o público ouve uma quarta".


          Num jogo sutil, Jouvet nos mostra que o ator, que pretensamente se desdobra, é mais que duplo: "Além do parceiro vivo que está diante dele, há um parceiro virtual que é a personagem, portanto, que se distingue dele, e está no interior do ator-executante; há também o ator que se olha enquanto faz o que faz, que controla. Esse estado de consciência se agrava ainda mais quando o intérprete é também o encenador do espetáculo.


          Jouvet notou também as flutuações conscientes segundo as reações do espectador. Em cena, o ator registra tais reações como um sismógrafo ultra-sensível e reajusta gradativamente a orientação, a intensidade de sua projeção da personagem. O espectador não está inteiramente em sua pele de espectador, também ele fica desdobrado, há o espectador que se transporta para a cena, tomando imaginariamente o lugar do herói e há o espectador que, sentado em sua poltrona, apenas olha.


O PROBLEMA DA EMOÇÃO


          Deve-se experimentá-la para transmiti-la?
         
          No correr do tempo, a sensibilidade assume formas diversas. Exploda, aconselhava Dorat ao ator francês em 1771, enquanto Diderot, em seu Entretien sur le Fils Naturel, dizia emocionar-se muito mais com "gritos, palavras inarticuladas, vozes rachadas, alguns monossílabos que escapavam em intervalos, um murmúrio qualquer da garganta entre dentes".


          No fim do século passado (XIX) ainda se tinha a lágrima fácil. Antoine conta que Francisque Sarcey provocava seu próprio choro lendo em público O Poder das Trevas, de Tolstói e que Gémier, na caixa do ponto, chorava durante a representação de Poil de Carotte, no Théâtre-Libre.


          Na Rússia Tchecov, vendo Sarah Bernahrdt representar, achou-a muito fria: "Falta-lhe a chama e só ela é capaz de nos tocar a ponto de fazer correr nossas lágrimas, de fazer-nos perder a consciência". O ator, segundo Beatrix Dussane, é perpetuamente "emocionável", "como o negativo fotográfico é perpetuamente sensível".


          Chorar é um critério para Tânia Balachova: considera dotados os alunos que sabem colocar-se diante de um espelho, murmurar frases, sentir uma grande emoção e fazerem chorar a si mesmos. No TNP, quando se tratou de montar uma obra romântica (Ruy Blas), Jean Vilar precisou lembrar a seus atores que era necessário representar esse gênero de peça com o coração, com a sinceridade do coração, com ardor. Alguns têm o gosto pelo sofrimento. Jean Marais queria que os estigmas de seus papéis se imprimissem em seu corpo, que pudesse verdadeiramente sentir os males de sua personagem e ter o mérito não de experimentá-los, porém de suportá-los.


           Em vez de se abandonar à emoção, outra tendência consiste em refreá-la. Na concepção de Delsarte, "os verdadeiros artistas só deixam que seus gestos expressem a décima parte das emoções íntimas que parecem sentir, e que desejam esconder ao interlocutor. É assim que se consegue comover o auditório". Louis Jouvet propõe um truque: experimentar um sentimento diverso do que se quer mostrar, do mesmo modo como se faz o cenário em papier mâché, para que de longe tenha a aparência de mármore. É reconhecer que a arte pode nascer de uma suprema impostura.


          Dullin sentiu-se profundamente ferido com o triunfo do métier sobre a sinceridade:


          "Gostaria de que somente as lágrimas verdadeiras pudessem transformar uma platéia. Infelizmente, vi chorar lágrimas verdadeiras, vi o ator empalidecer, sofrer na carne, levado por sua sinceridade absoluta e o público permanecer insensível. Um histrião que o seguia, macaqueando a dor, deixava a platéia transtornada. Custou-me muito tempo para aceitar essa humilhação. Foi preciso que eu me desse conta de que o sucesso do histrião vinha do fato de que ele executava, por falta de sinceridade, uma ampliação necessária ao teatro, que proporcionava não a dor, porém a máscara da dor e que atuando com exagero estava no verdadeiro".


          Controle, transferência, engodo. Há também o alheamento, a derrisão. Eis como o ator inglês Gerald du Maurier aconselha a representar uma cena de paixão: Dizer eu te amo, bocejar, acender um cigarro e ir-se embora".


          O ator é, por pendor, sentimental e lírico, tende a soltar a sensibiliadde, a comprazer-se emocionando os outros. Adquirir o controle absoluto dessa sensibilidade exige dele grande esforço, sobretudo nos países latinos, onde se considera que "a chama interior", visivelmente manifesta, atesta que o comediante é dotado para seu ofício. De fato, o mecanismo do nascimento da emoção em cena jamais fora analisado de maneira muito clara. Coube a Stanislavski explorar, entre outros, esse domínio.
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Extraído de "O ator no século XX", Editora Perspectiva

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