quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Breve encontro"

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Bela reflexão sobre a paixão


Lionel Fischer


O dramaturgo Noel Coward escreveu a peça "Natureza morta". O cineasta David Lean a adaptou para o cinema, rebatizando-a de "Desencanto". E agora Eduardo Wotzik adapta o filme para o palco, com o título "Breve encontro". Pois bem: qual dos três títulos retrataria com mais propriedade a essência da obra? Ao que me parece, os três, posto que não excludentes. Em cartaz no Teatro dos Quatro, "Breve encontro" chega à cena com direção de Eduardo Wotzik e elenco formado por Carla Ribas, Fernando Arze, Paulo Giardini, Cristina Rudolph e Rubens Araújo.

Supostos entendidos em questões amorosas costumam afirmar que paixões só eclodem em pessoas arrebatadas, paroxísticas, um tanto operísticas e, assim, a todo momento propensas ao desvario amoroso. Isto pode ser verdade, sem dúvida, mas não é menos verdadeiro que uma paixão avassaladora possa ocorrer entre pessoas recatadas, pudicas, perfeitamente enquadradas em um relacionamento monogâmico. E é exatamente o que ocorre aqui.

A protagonista é uma mulher casada há décadas e mantém com o marido uma relação estável. Um belo dia, conhece um médico, também casado e cuja relação com a esposa se enquadra igualmente nos cânones de uma relação burguesa. Para surpresa de ambos, começam a se encontrar às quintas-feiras, e pouco a pouco o flerte inicial se converte em paixão e os deixa atônitos. O que fazer diante de um tal quadro? Abandonar a estabilidade de casamentos mornos e levar às últimas conseqüências esta deliciosa cilada do destino? Ou a ela renunciar, optando por conservá-la na memória como um momento precioso e inesquecível?

Impregnado de reflexões mais do que pertinentes sobre as relações amorosas, o excelente material dramatúrgico ganha ainda maior relevância graças à engenhosa estrutura narrativa criada por Eduardo Wotzik, determinante para o sucesso desta oportuna empreitada teatral.

Tal engenhosidade não se prende ao fato da protagonista narrar e viver simultaneamente sua história, já que isso não constitui nenhuma novidade. O grande achado da montagem é que, em algumas ocasiões, a protagonista está dialogando com um personagem e inesperadamente percebe-se que o interlocutor não está mais ali, posto que nada mais retruca. Ou seja: o que é visto pode ou não estar acontecendo no plano real, o que faculta ao espectador ao menos duas possibilidades de apreensão da narrativa.

Com relação ao espetáculo, Eduardo Wotzik impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com os climas emocionais em jogo. Como os personagens não podem viver às claras sua paixão, certamente Wotzik pediu a Fernanda Mantovani que criasse uma iluminação enclausurada, em alguns momentos até mesmo claustrofóbica, o que é materilizado de forma altamente expressiva. Certamente, um dos mais brilhantes trabalhos de luz da atual temporada.

E no que se refere às marcações, todas elas estão em plena consonância com os sentimentos e dúvidas das personalidades retratadas, cabendo ainda destacar a entrada e saída de alguns poucos elementos cênicos, que surgem e desaparecem como se deslizassem sobre trilhos - uma ótima idéia, já que muitas cenas ocorrem numa estação de trens.

Na pele da protagonista, Carla Ribas exibe atuação sensível e emocionada, trabalhando de forma irretocável as contradições de sua personagem, sempre dividida entre a paixão e a culpa. Vivendo o médico, Fernando Arze tem performance correta, mas acredito que tal correção possa ser transcendida se o ator conseguir, ao longo da temporada, colocar mais paixão em seu personagem - não basta dizer "eu te amo": é preciso que, além das palavras, todo o corpo do personagem traduza tal sentimento. 

Encarnando o marido, Paulo Giardini materializa de forma irrepreensível um ser que, aparentemente frio, indiferente e nada atento ao que se passa com sua esposa, ao final revela, ao menos no meu entendimento, grande sabedoria, quando diz "fico feliz por você estar retornando para mim" - a frase pode não ser exatamente esta, mas o conteúdo sim. Em participações brevíssimas, Cristina Rudolph e Rubens Araújo extraem o possível de seus personagens.

No complemento da ficha técnica, são de excelente nível a direção de arte de José Dias, os figurinos de Anna Cecília Cabral e a trilha sonora de Bernardo Gebara, que realiza uma espécie de rondó com trechos do segundo movimento do Concerto nº 2 para piano e orquestra de Sergei Rachmaninoff.

BREVE ENCONTRO - Direção e adaptação de Eduardo Wotzik. Com Carla Ribas, Fernando Arze, Paulo Giardini, Cristina Rudolph e Rubens Araújo. Teatro dos Quatro. Terças e quartas, 21h30.

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