quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Entre quatro paredes

Eric Bentley


Esta peça apresenta uma situação forte. Três pessoas, mortas recentemente, estão no inferno. Apesar de não terem se conhecido nesta vida, são condenadas a passar a eternidade juntas num quarto. Cada uma delas tenta descobrir uma forma de felicidade com uma das duas outras; mas não existe qualquer esquema no qual as três possam ser felizes. Até mesmo a que fica de fora da felicidade dupla encontrável no sexo pode arruinar a felicidades das outras duas por sua eterna presença. No final, as três percebem que a idéia de colocar três pessoas completamente diferentes num quarto, apesar de aparentemente inócua e feita ao acaso - além de que nem o sono, nem as lágrimas poderiam jamais quebrar a tensão - resultava sendo um inferno tão terrível quanto cadeias eternas e o fogo incessante.

Naturalmente, não existe nada em tudo isto que nos surpreenda. As peças Outward Bound, britânica, e Hotel Universe, americana, de longa data vinham agradando platéias convencionais com sua habilidosa mistura de teatro de boulevard e pretensa interpretação do outro mundo. Escritores de peças de boulevard como H. R. Lenormand e J. B. Priestley, impressionavam as platéias de teatro com a proposição de que o tempo não existe. E não só pelo assunto que a peça de Sartre terá conotação com elas. Sua técnica não apresenta segredos para aqueles que já admiravam Ibsen e Strindberg.

É uma peça altamente concentrada de um ato só, transmitindo emoção crescente; até mesmo alguns de seus aspectos sobrenaturais podem parecer strindberguianos. Já sua carpintaria teatral poderia mais apropriadamente ser denominada ibseniana, pois consiste preincipalmente em não deixar a platéia tomar conhecimento dos fatos cedo demais.

Em outras palavras, para caracterizar mais positivamente esta apreciação, consiste em fazer com que as descobertas explodam como bombas-relógio cuidadosamente ajustadas para determinados momentos da ação. Trata-se de uma bem-construída peça de sala-de-estar, que revela seus segredos com toda a finesse e o aplomb que as platéias parisienses - mais freqüentadoras dos boulevards que do Vieux Colombier - esperavam há muito tempo.

O diálogo é estruturado em prosa urbana esmeradamente polida na melhor tradição naturalista francesa. A história apresenta várias cenas picantes que se pode costumeiramente associar a peças e novelas francesas, bem como a filmes franceses, bons ou maus. Adultério, infanticídio, lesbianismo, acidente de tráfego, suicídio duplo na cama, recusa de lutar pela França, morte diante de um pelotão de fuzilamento - o que mais poderia desejar um diretor de cinema francês? O cenário, para envolver todas essas idéias, é uma sala-de-estar do Segundo Império; e é muito agradável de se perceber que as unidades dramáticas são escrupulosamente observadas mesmo no inferno.

Depois de reunir todos os elementos de uma peça ruim e profundamente convencional, Sartre consegue fazer uma boa peça com eles. Ele usa a literatura de consumo como material bruto para a sua arte. Se Entre Quatro Paredes é uma peça de sala-de-estar, isso é a candente ironia do inferno. O cenário do Segundo Império, que enfeitou as peças de Sardou, de Dumas e de Augier é transferido para as profundas, ou mais terrível ainda, são essas regiões infernais que se transferem para ele. Evidentemente o dramaturgo tinha intenções muito sérias.

Sim: Entre Quatro Paredes é uma peça moralista. É uma peça de caráter, de acordo com a definição de Aristóteles: "Caráter é o que revela uma intenção moral, mostrando o que um homem pode fazer e evitar". Mostra o tipo de coisa que três pessoas escolheram e evitaram para merecer a danação eterna. E mostra o tipo de coisas que escolhem e evitam mesmo no inferno. O que é o inferno? É ser uma pessoa mal-acabada e viver eternamente aprisionada com outras pessoas mal-acabadas. Quando um personagem de Sartre observa que não existe um carrasco na colônia penal eterna, outro responde: "Fizeram isso para economizar em pessoal, eis tudo. São os fregueses que se servem, como nas cafeterias...Cada um de nós é o carrasco dos outros dois".

Sartre resolve seu problema triangular com grande habilidade. A ação apressa, diminiu, vira, torce para outro lado, à medida que cada um dos personagens esteja em evidência. Ajunta-se a B contra C, depois B abandona C para ficar contra A, depois...as possibilidades psicológicas e histriônicas dessa fórmula são exploradas ao extremo. Naturalmente, se Sartre desse a mesma importância para A, B e C, a peça perderia sua concentração e uma atenção vivamente dirigida, que é obviamente o que procura.

Portanto, ele coloca o homem no meio; duas mulheres ficam na periferia. Um antigo padrão parisiense. Mas Sartre possui intenções modernas. Suas três pessoas são três espelhos de uma ação; estão ali para dar forma, variedade e significado para o que poderia facilmente ser outra peça boêmia. Falando a respeito do quarto modernismo dos anos 20, Fergussom escreve: "Vemos agora alguns dos perigos da nova linha. Vamos precisar, é o que me parece, ficar contra o virtuosismo teatral de Cocteau, e a moldura teológica abstrata de Eliot, e a imagem popular luxuriante de Lorca, e colocar em seu lugar a concepção clássica de uma Ação de Henry James, vista redondamente, vista de muitos ângulos". Sartre, neste casao, tenta satisfazer os desejos do senhor Fergusson.

Os três personagens de Entre Quatro Paredes são: Garcin, um jornalista pacifista que morreu quando tentava fugir do serviço militar; Inês, uma funcionária lésbica dos correios, que seduzira a mulher de seu primo, Florence, e, quando o primo morreu num desastre de bonde, induziu Florence a cometer suicídio; e Estelle, uma nascisista mulher de sociedade que se casara por dinheiro, teve uma filha de relação adúltera, matara a criança e com isso levara o amante a suicidar-se.

Dos três, aparentemente, Garcin parece o menos culpado; ele bancara o herói durante toda a sua vida e continua durante algum tempo a querer fazer a mesma coisa no inferno; mas existem alguns fatos, inicialmente escondidos até mesmo de nós, que continuam a atormentá-lo. O moralista e herói tratava sua mulher muito mal. Mandava que ela lhe trouxesse o café na cama, quando ali se refestelava com sua amante mulata. Seu heroísmo é dúbio. Ele não enfrentara o castigo que lhe fora imposto e tentara fugir para o México. Quando quer se defender com a pergunta: "Poderia alguém julgar uma vida inteira somente por uma ação?" Inês força a aparição de algumas duras verdades diante dele:

GARCIN - Poderia alguém julgar uma vida inteira somente por uma ação?

INÊS - Por que não? Você sonhou durante 30 anos que tinha coragem; e se permitiu milhares de coisas porque aos heróis tudo é permitido. Como era conveniente! E então, na hora do perigo, quando descobriram tudo...você pegou o trem para o México.

GARCIN - Eu não sonhei com o heroísmo. Eu o escolhi. Somos o que desejamos ser.

INÊS - Prove então. Prove que não foi um sonho. Os fatos também decidem o que se desejou.

GARCIN - Eu morri cedo demais. Não tive tempo para executar meus atos.

INÊS - Sempre se morre cedo demais - ou tarde demais. Mesmo assim, uma vida é encerrada; o tiro é disparado, e temos que acertar nossas contas. Você é a sua vida e nada mais.

Quase que eu afirmava que esta passagem é o clímax tanto do enredo quanto da discussão. Mas não é verdade. É o clímax da discussão mas não do enredo. Trata-se de um clímax aparente que proporciona - de uma forma altamente dramática - um clímax ainda maior, depois do qual existe uma queda súbita e a peça termina com uma calma apavorante. 

A ação é a seguinte: depois que as palavras de Inês lhe tiraram algumas ilusões, Garcin decide finalmente satisfazer os desejos de Estelle de dormir com um homem, embora isto tenha que ser feito diante do olhar de Inês. Ele se atira sobre ela. Mas Inês persegue o casal com os olhos e a língua, gritando: "Covarde! Covarde!", e Garcin agora sabe que teve medo de ser soldado. Afasta-se de Estelle e conclui: "O inferno são os outros". Enfurecida, Estelle golpeia Inês com o cortador de papel. Tudo em vão. "Isso já foi feito, você não compreende?" Inês grita, "e nós ficaremos juntos para sempre". Um riso histérico sacode os três. Depois, um silêncio repentino. Todos percebem a situação instantaneamente. "Muito bem, continuemos", diz Garcin.

Essa é a fábula quase gótica de Sartre. É um melodrama, naturalmente. Mesmo que a casa assombrada seja chamada de inferno, mesmo que o criado kafkiano seja um demônio, mesmo que a campainha não toque nos momentos cruciais (ou a porta se abra magicamente ou não abra) e tudo isto seja interpretado com pompas alegóricas, não precisamos ser totalmente solenes em nossa aceitação da peça. Não mais do que no caso de Strindberg - cuja estrutura, em um longo ato e imagens morais, seja invocada aqui por Sartre - seria um insulto interpretar as intenções do autor excentricamente.

A pergunta: estaria ele falando seriamente? é bastante ambígua. Todas as obras de arte são sérias. Sartre escreveu uma peça com idéias sobre as quais ele é perfeitamente honesto e, como essas idéias estão cuidadosamente integradas com a ação, somos obrigados a tomá-las "seriamente". Mesmo assim, sem pretgender fazer uma distorção, eu chamaria Entre Quatro paredes de melodrama filosófico. 

Certamente não é uma tragédia - não existe a dignidade trágica, não existe um protagonista trágico, não existe nada trágico - a menos que se queira discursar oracularmente sobre a tragédia da vida humana como um todo. Não é uma comédia - não existem risos nem aceitação nesse ataque inqualificável e quase demoníaco sobre a natureza humana. Se Strindberg misturou as formas da comédia e da tragédia, aqui não existe qualquer indicação de que Sartre esteja tentando juntar essas formas novamente.

Entre Quatro Paredes, como tantos outros ótimos trabalhos pós Strindberg, pertence a um novo gênero intermediário. E se esta designação é vaga demais, ofereço a descrição de "melodrama filosófico" para caracterizar esta combinação do histrionismo com o pensamento sério, esta última experiência do drama antinaturalista francês, esta última análise da escrutinidade do olho interno.

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Trecho extraído do livro O dramaturgo como pensador, Editora Civilização Brasileira, tradução de Ana Zelma Campos.

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