sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Palácio do fim"

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Comoção no Poeira


Lionel Fischer


Em uma espécie de tribunal, onde a platéia é colocada, de certa maneira, no papel de júri, três personagens se confessam. O tema é o mesmo: o que fizeram (ou deixaram de fazer) durante a Guerra do Golfo, na qual os Estados Unidos e seus aliados invadiram o Iraque  para destituir o ditador Saddan Hussein, teoricamente uma ameça para a paz mundial - na realidade, como todos sabemos, a posse dos poços de petróleo era o grande alvo.

Em cena, três personagens. O cientista britânico especialista em armas químicas, que optou pelo silêncio. A sargento americana que chocou o mundo torturando prisioneiros e foi fotografada a eles impondo abjetas humilhações. Uma mulher árabe, barbaramente torturada e que perde parte de sua família. 

O primeiro relata o longo caminho que o levou da omissão a uma corajosa tentativa de redenção. A segunda justifica as inomináveis ações que perpetrou. A terceira faz comovente, lúcida e dilacerante reflexão sobre o regime de Hussein e a atuação deplorável dos aliados após a vitória. Eis, em resumo, o enredo de "Palácio do fim" (Teatro Poeira), da premiada dramaturga canadense Judith Thompson. Com direção assinada por José Wilker, a montagem tem elenco formado por Antonio Petrin, Camila Morgado e Vera Holtz.

Estruturada na forma de monólogos, assim excluindo qualquer contracena entre os personagens, "Palácio do fim" examina com implacável lucidez um contexto que vai muito além das individualidades retratadas. O cientista se cala por medo e conveniência, pois tornar públicas as reais motivações da guerra equivaleria a destruir a imagem de zeladores da paz mundial dos aliados. A sargento, sem dúvida portadora de gravíssima psicopatia,  pode ser encarada como símbolo de uma nação (Estados Unidos) que, por julgar-se superior a todas as demais, não hesita em exercer seu abjeto imperialismo. Com relação à mulher árabe, esta nos faculta, além das reflexões já mencionadas, o acesso aos horrores da tortura, que tinham como cenário principal o famigerado palácio que dá título à obra.

Como já deve ter ficado implícito, estamos diante de uma obra poderosa, que nos gera um sem número de sentimentos, dentre eles a indignação, o asco e a solidariedade. E que nos obriga a refletir não apenas sobre os fatos retratados, mas sobretudo sobre nossa própria postura diante da realidade que nos cerca.

Nosso país está mergulhado na corrupção, que se alastra como uma peste; a fome e o desemprego imperam; a saúde pública e a educação são caóticas; as milícias constituem um fortíssimo poder paralelo. E o que fazemos? Que atitudes tomamos? Em geral, prevalece nossa indiferença e conferimos ao nosso silêncio conotações de sabedoria. Sabemos que estamos com lama até o pescoço, mas acreditamos estar a salvo porque ainda conseguimos (exceção feita aos menos favorecidos) manter limpas as unhas nas pontas dos dedos. Mas, até quando?

Com relação à montagem, José Wilker criou uma encenação que considero magistral. E não porque tenha criado marcas espetaculares, mas justamente por ter renunciado a elas e investido todas as suas fichas no trabalho dos atores. Em meio a uma atmosfera sombria e claustrofóbica, tudo fica à mercê das palavras e do trabalho dos atores. E sendo Wilker um ator de exceção, nada mais natural que tenha conseguido extrair atuações maravilhosas do elenco.

Antonio Petrin está irretocável na pele do angustiado cientista. E se de início nos incomoda a deplorável omissão do personagem, mais adiante ele nos comove com sua determinada tentativa de redenção. Vivendo a sargento, Camila Morgado nos gera inenarrável repulsa, já que esta resulta não da mera constatação da psicopatia do personagem, como já foi dito, mas sobretudo porque a atriz consegue transcender seus limites e convertê-lo num retrato da barbárie que está na essência da política externa dos EUA que, guardadas as devidas proporções, em muito se assemelha à da Alemanha de Hitler - ou será que os Estados Unidos também não se consideram uma raça superior e portanto no direito de impor seu jugo a quem lhe convier?

Finalmente, chegamos a Vera Holtz. Mencionar aqui seus vastíssimos recursos expressivos constituiria perda de tempo, já que todos sabemos ser ela uma das maiores atrizes deste país. Mas no presente caso, Vera Holtz consegue ir além de todas as expectativas. Sua performance é tão visceral e contundente que se inscreve, em minha opinião, dentre aquelas que só acontecem uma vez em cada década. E tal avaliação poderia ser fruto, apenas, do texto final que profere, quando narra as torturas de que foi vítima, assim como seus filhos. O exasperado e circular gesto que executa com a mão direita, reforçando drasticamente o impacto das palavras de que se vale para descrever a morte de seu filho de oito anos, muito provavelmente causaram fortíssima comoção em toda a platéia, que certamente jamais esquecerá este momento sublime.

No tocante à equipe técnica, considero da mais alta expressividade os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna e imperdível montagem, que o público carioca haverá de prestigiar sem reservas - João Gabriel Carneiro (tradução), Marcos Flaksman (cenografia), Beth Filipecki e Renaldo Machado (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (criação musical).

PALÁCIO DO FIM - Texto de Judith Thompson. Direção de José Wilker. Com Antonio Petrin, Camila Morgado e Vera Holtz. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.             

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