segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Nise da Silveira - Senhora das Imagens"

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Deslumbrante encontro nos Correios


Lionel Fischer


O presente espetáculo está em sua quarta temporada em 2011 e, por razões que a razão desconhece, não o tinha assistido até este último sábado. Mas como a vida, quase sempre, nos faculta a possibilidade de redenção, felizmente pude agora me redimir e assim ter o privilégio de testemunhar umas das montagens que mais me tocaram desde que exerço o ofício de crítico teatral.

Em cartaz no Centro Cultural Correios, "Nise da Silveira - Senhora das Imagens" presta um emocionado e poético tributo a uma das mulheres mais extraordinárias já nascidas neste país, cujo principal mérito - dentre muitos outros - foi o de perceber que já não era mais possível encarar os doentes mentais como seres inferiores e tratá-los com uma mescla de violência e descaso. Assim, criou terapias alternativas através das quais procurava ter acesso ao inconsciente de seus pacientes, que se materializava em obras de arte - obras estas, naturalmente, que os críticos de arte não consideravam arte...

Contando com direção e dramaturgia de Daniel Lobo (co-dramaturgia de Mariana Terra) e esta última como a única intérprete, "Nise da Silveira..." faculta ao público a oportunidade de conhecer não apenas a história pessoal e profissional desta mulher absolutamente fantástica, mas também a de um país cuja classe dominante continua a ignorar aqueles que da vida só estão fadados a conhecer seu lado mais amargo. Se aos menos favorecidos já não é oferecido praticamente nada, imagine-se então aos chamados "loucos"...

Como já foi dito, este espetáculo só conta com uma atriz em cena. Mas Ana Terra, além de dar vida a Nise da Silveira, interpreta muitos outros personagens, todos eles criados a partir de pessoas que existiram. Afora isto, lança mão de belíssimos vídeos, um deles exibindo comovente depoimento do poeta Ferreira Gullar - em outro, Ednaldo Lucena e Gilray Coutinho interpretam dois psiquiátras retrógrados que contestam os métodos terapêuticos de Nise. E também escutamos a Voz do Inconsciente (Carlos Vereza). Esta última, em dado momento, diz o seguinte:

"Um sonho. Uma caverna. O inconsciente rasga o ventre de uma tigresa. A vida chegou aqui a seu ponto máximo. A obra está terminada. O caminho do homem se eleva na direção do céu. É como o vôo dos gansos selvagens que se mantêm a grande altura. Suas plumas caem na terra e ornamentam os templos. A vida de um homem que se aperfeiçoou é uma luz resplandecente para a humanidade".

Texto belíssimo, sem dúvida. E não menos belo é tudo que escutamos nos Correios, sendo tal beleza impregnada de humor, humanidade e eventualmente de um furor semelhante ao das grandes tempestades - isto ocorre nas passagens em que Nise mostra-se indignada com sua prisão e mais ainda quando, ao ser libertada e  reassumir suas funções como psiquiatra, é apresentada ao revolucinário tratamento à base de eletrochoques, que se recusa terminantemente a adotar.

Tendo como ponto de partida um material dramatúrgico excelente, o diretor Daniel Lobo criou uma encenação fascinante, expressiva em todos os momentos, alternando cenas, vídeos, coreografias e em alguns momentos uma relação direta entre a intérprete e a platéia. E aqui chegamos a Ana Terra.

Sem nenhum temor de parecer (ou ser) enfadonho, torno a repetir o que já disse inúmeras vezes: este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E Ana Terra é uma inérprete brilhante. E aqui não estou me referindo apenas aos seus vastíssimos recursos expressivos, tanto no que diz respeito ao corpo como à voz, mas também à sua visceral capacidade de entrega, sendo tal predicado fundamental para o estabelecimento de uma fortíssima cumplicidade entre palco e platéia. Sob todos os pontos de vista, uma das mais impactantes atuações que já assisti em toda a minha vida.

Na equipe técnica, Ana Botafgo assina coreografias belíssimas, sendo maravilhosa a iluminação de Djalma Amaral, que, com grande sutileza e sensibilidade, reforça de forma admirável todos os climas emocionais em jogo. Igualmente irrepreensíveis a cenografia e figurino de Ronald Teixeira, o mesmo aplicando-se à direção musical e trilha sonora original de João Carlos Assis Brasil - assim como a luz, é impressionante como a trilha sublinha não somente as emoções explícitas, mas também aquelas ainda sob o domínio do Inconsciente. Cabe também destacar a preciosa colaboração de Angela Herz na preparação vocal da atriz.

NISE DA SILVEIRA: SENHORA DAS IMAGENS - Texto e direção de Daniel Lobo. Co-dramaturgia de Ana Terra. Com Ana Terra. Centro Cultural Correios. Quarta a domingo, 19h.  

  

    
  

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