quarta-feira, 20 de julho de 2011

Franz Kafka

O problema da solidão

Leandro Konder


          Kafka foi um inadaptado, um desenraizado, em permanente busca de enraizamento. Ele próprio se definiu como um ser "sem antepassados, sem mulher, sem posteridade, com um violento desejo de possuir antepassados, vida conjugal e posteridade" (Diário, 21 de janeiro de 1922).

          A solidão o atormentou ao longo de praticamente toda a sua vida. Desde bem jovem, ele luta ao mesmo tempo para se ligar a outrem, para se integrar em uma comunidade humana, e, por outro lado, para manter a sua liberdade individual, a sua autonomia pessoal. Em carta a Oscar Pollak, a 10 de janeiro de 1904, Kafka já escrevia: "Se alguém me estende uma mão franca, isso me faz um grande bem, mas se essa mão me prende o braço, isso já é penoso e intolerável para mim".

          Por momentos, a solidão lhe parece o preço que ele deve pagar para preservar a sua personalidade, a sua individualidade. Cioso da sua independência, ele repele a possibilidade de suportar a anexação do seu "eu" a um rebanho qualquer, a uma comunidade do tipo dos formigueiros, na qual o ser coletivo absorve os seres individuais. Nessas ocasiões, ele chega a considerar a solidão um estado que deve ser buscado, ele chega a ansiar por um aprofundamento da solidão.

          Mas nem toda comunidade é formigueiro. Nem a verdadeira comunidade implica em sacrifício da personalidade. Pelo contrário: desde a juventude, ele ouve uma voz que lhe diz nada farás sem os outros. (Carta a Pollak, 6 de setembro de 1903). A idéia de uma liberdade individual que exista fora do círculo das relações humanas é uma idéia que só lhe vem à cabeça por breves momentos, sem, no entanto, chegar de fato a convencê-lo.

           E, quando se observa com maior rigor, Kafka encontra dentro dele mesmo, encravada em sua subjetividade isolada, a presença do social, a dimensão coletiva do humano: "A unidade humana, que todo homem, mesmo o mais social e mais flexível, põe em dúvida de tempos em tempos (ainda que apenas afetivamente) revela-se também, por outro lado, a todo homem - ou parece revelar-se - na harmonia total que pode sempre ser encontrada entre o desenvolvimento do conjunto da humanidade e o desenvolvimento do indivíduo. Mesmo nos sentimentos mais fechados do indivíduo". (Diário, 4-12-1913).

          Vimos na capítulo 12 que Kafka foi levado a encarar a sua fragilidade como uma característica essencial e insuperável da sua natureza. Com a solidão, entretanto, não se dá o mesmo: ele nunca chega a se convencer inteiramente de que é um predestinado para a solidão.

          A solidão é o seu "castigo", o mal contra o qual ele não se cansa de protestar, o mal que a sua obra denuncia com maior vigor, o mal com que não é possível nos conformarmos. A solidão é a praga que Kafka soube representar como ninguém.

          É a tragédia de Gregor Samsa reduzido à condição de inseto repugnante, no meio da família, em A Metamorfose.

           É a tragédia do Artista da Fome, que era obrigado a jejuar porque não tinha em comum com os outros homens nem sequer a possibilidade de comer algum alimento capaz de lhe agradar ao paladar.

          É a tragédia de Georg Bendemann, em A Condenação, que se vê separado por um equívoco a um só tempo do pai e do seu melhor amigo.

          É a tragédia do pobre animal aterrorizado que construiu A Toca, meteu-se dentro dela, mas não encontrou um mínimo de segurança que lhe possibilitasse continuar vivendo.

          Há uma representação da tragédia da solidão, em especial, que vale a pena recordar aqui: é a de um pequeno conto de Kafka intitulado Um Animal Híbrido. O narrador começa a história dizendo que herdou de seu pai um animal que é metade gato metade cordeiro. Trata-se, obviamente, de um bicho que não tem igual neste mundo.

          As crianças levam gatos para vê-lo e, em determinada ocasião, levam também um cordeiro; durante tais visitas, porém, não se produzem cenas de reconhecimento. Quando é posto para brincar com os gatos, o animal híbrido foge deles; quando é posto para brincar com os cordeiros, ataca-os. Vive em absurda solidão, bebendo humildemente o seu leite.

           Um dia, o narrador, deprimido com a situação do animal, coloca-o no colo e fica a olhá-lo longamente. Surpreende algumas lágrimas no pelo do bicho ("Seriam dele? Seriam minhas?"). E conclui a sua meditação com uma sombria pergunta: "A faca do carniceiro não seria, talvez, uma libertação para este animal?"

          Kafka não poderia ter representado de maneira tão imaginosa e tão sugestiva o drama da solidão se não o conhecesse tão de perto, se não o tivesse vivido pessoalmente e se não reagisse com todas as suas forças contra a desumana condição do homem solitário que lhe foi imposta desde o princípio da sua vida.

          Mas Kafka poderia ter conhecido bem o drama da solidão, poderia tê-lo representado de maneira sugestiva e nem por isso a sua obra teria a imensa importância artística que hoje lhe reconhecemos, caso a solidão fosse um problema sentido apenas por um ser exepcional ou por um pequeno grupo de seres exepcionais. O que fez com que a abordagem do problema da solidão na obra de Kafka tivesse a ampla repercussão que teve foi o fato da solidão ter se tornado, no nosso século, um problema social.

          A sociedade em que vivemos tornou-se uma fábrica de solitários: o espírito competitivo e a busca do lucro particular lançam os indivíduos uns contra os outros e tornam cada vez mais difícil a prática do espontâneo amor ao próximo, preconizada por Cristo.

           Os patrões temem os seus emporegados, encaram-nos como "inimigos pagos", exatamemnte como ocorria com o pai de Kafka. Os empregados vêem nos patrões os "inimigos pagadores", tal como Kafka supôs que seu pai devesse ser considerado.

          Por outro lado, cada proprietário enxerga no seu vizinho um competidor que pode arruiná-lo, uma ameaça à segurança da sua propriedade (Cf. o conto de Kafka O Vizinho, em que um comerciante vive preocupado com a possibilidade do colega da sala ao lado lhe tomar os fregueses e levá-lo à falência).

          E, pelo menos nos países em que há desemprego, cada operário pode ser levado a ver no colega mais próximo o sujeito que pode lhe roubar a vaga, isto é, um competidor no mercado de trabalho.

          Através do controle dos meios de publicidade e através do controle do ensino, a ideologia dominante ensina todos a recitarem o catecismo do comodismo individualista, procura transformar as criaturas em monstros de egoísmo. Basta ver algumas frases típicas: "Quem gosta de mim sou eu", "Cada um por si e Deus por todos", "Eu quero é sombra e água fresca", etc.

          O resultado desse bombardeamento da solidariedade humana é que, no seio do próprio povo, a confusão desune as pessoas, isola umas das outras. Kafka chegou a observar o fenômeno e comentou com Janouch: "O povo, na Bíblia, é um conjunto de indivíduos unidos por uma lei comum. Hoje, as massas se afastam de semelhante unidade e tendem à desagregação, por carecerem de comunidade interior".

           Um acontecimento acontecido há poucos anos e fartamente noticiado pelos jornais mostra até que ponto se tornou generalizada, na sociedade contemporânea, a situação de solidão, que Kafka viveu e retratou como um drama no início deste século.

          O fato foi o seguinte: às oito e meia da noite, numa grande cidade dos Estados Unidos, a jovem Catherine Genovese, de vinte anos de idade, foi agarrada por um louco, na porta de sua casa. O louco segurou a moça pelo braço, sacou de uma faca e começou a matá-la. Vibrou-lhe inúmeros golpes. Durante cerca de uma hora e meia, Catherine Genovese gritou por socorro, enquanto o louco a apunhalava. Durante cerca de uma hora e meia, várias dezenas de pessoas ouviram os gritos da moça e não se moveram do lugar onde se achavam, porque - conforme disseram mais tarde à polícia - não queriam se "meter em confusão". Catherine morreu. O louco assassino foi internado no manicômio judiciário. Os vizinhos de Catherine continuam soltos, gozando de "sombra e água fresca".
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Capítulo extraído de Kafka - vida e obra, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 5ª edição, 1974.

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