segunda-feira, 2 de maio de 2011

Panorama contemporâneo

Sábato Magaldi


          A maioria da crítica e dos intelectuais concorda em datar do aparecimento do grupo Os Comediantes, no Rio de Janeiro, o início do bom teatro contemporâneo, no Brasil. Ainda hoje discute-se a primazia de datas e outros animadores reivindicam para si o título de responsáveis pela renovação do nosso palco. Está fora de dúvida, pelo alcance, pela repercussão, pela continuidade e pela influência no meio que Os Comediantes fazem jus a esse privilégio histórico.

          Foi seu precursor imediato, na tentativa de disciplinar a montagem, o Teatro do Estudante do Brasil, fundado por Paschoal Carlos Magno em 1938. Reunindo amadores, lançaram-se Os Comediantes à tarefa de reforma estética do espetáculo. Não se observou uma diretriz em seu repertório, nem coerência nos propósitos artísticos. Um lema apenas pode ser distinguido na sucessão algo caótica de montagens, em meio a crises finaceiras, fases de alento e de desânimo: todas as peças devem ser transformadas em grande espetáculo.

          Modificando o panorama brasileiro, em que o intérprete principal assegurava o prestígio popular da apresentação, independentemente do texto, do resto do elenco e dos acessórios, Os Comediantes transferiram para o encenador o papel de vedeta. Nessa reforma, o nosso teatro procurava, mais uma vez, com algum atraso, acertar o passo pelo que se praticava na Europa. Mesmo Jouvet, que residiu no Rio de Janeiro, escapando à ocupação alemã da França, na Segunda Guerra, não atuou no meio, de modo a produzir frutos. Foram necessários mais alguns anos para que se consumasse a atualização estética.

          Sem escolas, sem modelos, sem conhecimento efetivo do problema, não poderíamos, por nossa conta, realizar a mudança. Ela nos veio com a presença de outro estrangeiro, trânsfuga da guerra, que aportou ao Brasil um tanto ao acaso e que está hoje definitivamente incorporado ao teatro nacional, o polonês Ziembisnki.

          Formado na escola expressionista e dominando como poucos os segredos do palco, em que é um mestre na iluminação, Ziembinski veio preencher um papel que se reclamava: o de coordenador do espetáculo. Sob sua orientação, entrosaram-se os vários elementos da montagem. O ator de nome cedeu lugar à preocupação da equipe. Os cenários e os figurinos, que antes eram descuidados e sem gosto artístico, passaram a ser concebidos de acordo com as linhas da revolução modernista, sobressaindo-se o nome do pintor Santa Rosa (1909-1956), um dos mais cultos intelectuais do teatro brasileiro.

          O conjunto harmonizava-se ao toque do diretor, que acentuou o aspecto plástico das marcações e os efeitos de luz. De súbito, o palco sentiu-se irmanado à poesia, ao romance, à pintura e à arquitetura brasileiros, com os quais não mantinha contato. Entre as apresentações de textos estrangeiros que marcaram época, sobretudo as de Desejo, de O'Neill, e A rainha morta, de Montherland, teve um impacto surpreendente, em 1943, a estréia de Vestido de noiva, do brasileiro Nelson Rodrigues. Costuma-se mesmo datar desse lançamento o começo da moderna dramaturgia nacional, pela feliz união de múltiplos fatores, ausentes em nossas peças. 

          Os Comediantes passaram por uma fase profissional, mas alguns malogros financeiros trouxeram o encerramento de suas atividades. Com exceção das velhas companhias, que se mantiveram à margem do fluxo renovador, todos os elencos novos aproveitaram a experiência de Os Comediantes. Não se aceitavam mais os métodos antigos. Qualquer que fosse o texto, impunha-se uma encenação de gosto. Outros nomes estrangeiros, de melhor ou pior formação, somaram-se a esse esforço da década de 40, que deslocava para o encenador o eixo central do espetáculo.

          Nos Estados, registraram-se a essa altura algumas tentativas amadoristas, que, oriundas de intelectuais e escritores, independentes da vida do palco, procuraram sempre pautar-se por sérios e válidos exemplos artísticos. Atuando há várias décadas, graças aos laços de família que unem seus membros, o Teatro de Amadores de Pernambuco é o caso mais louvável e sadio entre as organizações do gênero: procurou um repertório fora dos moldes comerciais e, mais de uma vez, recebeu no Recife diretores estrangeiros, que se haviam firmado no Rio e em São Paulo.

          Pelas condições exepcionais que oferecia, esta última cidade assumiu, na década de 50, uma liderança teatral, agora dividida com a antiga metrópole. As velhas temporadas profissionais, em São Paulo, eram praticamente uma importação do Rio de Janeiro. Alguns atores paulistas, de aceitação popular, nunca se alçaram a um repertório de qualidade. A procura de um teatro artístico deveu-se ao Teatro Experimental, dirigido por Alfredo Mesquita, e ao Grupo Universitário de Teatro, fundado por Décio de Almeida Prado. A cidade que mais crescia no mundo não havia ainda incluído o teatro entre os seus hábitos cotidianos.

            O surto admirável do teatro paulista é obra do industrial italiano Franco Zampari, criador, em 1948, do Teatro Brasileiro de Comédia, cuja história não só domina o panorama teatral dos últimos anos, mas tem sido a fonte de outras companhias jovens de mérito. A fórmula do novo mecenas era simples: o cosmopolitismo de São Paulo reclamava uma atividade cênica semelhante à de Paris, Londres ou Nova York.

          Teoricamente, apenas a falta de um impulso inicial explicaria a ausência de teatro, num centro de alguns milhões de habitantes. O grupo, formado no começo por amadores, logo se profissionalizou, dentro do esquema obrigatório na época: entregue a direção artística a um encenador estrangeiro. No início da década de 50, o TBC, verdadeiro novo-rico do teatro, reuniu o maior número de talentos que já pisou simultaneamente um palco brasileiro: para uma sala de 400 lugares, existia um elenco estável de 30 figuras - quase todos os valores da nova geração.

          Certa vez, revezaram-se nas montagens quatro encenadores estrangeiros, contratados especialmente no exterior. Desencantados com as sombrias perspectivas européias do pós-guerra, esses artistas procuravam no Brasil um recanto pacífico para trabalhar. Adolfo Celi, o primeiro a ser convocado, depois de um estágio na Argentina, é o único remanescente desse grupo. Luciano Salce, Flamínio Bollini Cerri e Ruggero Jacobbi, em datas diferentes, preferiram integrar-se na rápida recuperação européia, enquanto o Brasil parecia sem rumo, na vertigem inflacionária.

          À volta dos festejos comemorativos do IV Centenário de São Paulo, em 1954, verificou-se uma febre imobiliária, e se julgou rendosa a aplicação de capital em casas de espetáculos. Construíram-se diversos teatros, e os primeiros atores, concentrados no TBC, começaram a dispersar-se. Essa modificação da paisagem era inevitável. Quando o elenco principiou sua atividade, uma peça não se mantinha em cartaz mais de dois meses. Os intérpretes estavam no palco ou ensaiando. O crescimento do público fez com que alguns êxitos se prolongasses por seis meses. Como utilizar tantos atores? Vários começaram a sentir-se postergados na distribuição dos papéis, e o amadurecimento, natural com a passagem dos anos, exigia um trabalho artístico impraticável numa única sala.

          O TBC proporciou a muitos intérpretes um público, e deu cidadania artística a vários nomes, que ali se fizeram adultos. Em vez de dividir com outros colegas os principais papéis, diversos atores preferiram tornar-se chefes de companhia, acumulando também a função de empresário, que, apesar dos riscos, se anunciava mais promissora que o trabalho assalariado. Formaram-se sucessivamente, dos quadros do TBC, a Cia. Lydia Lícia-Sérgio Cardoso, a Cia. Tônia-Celi-Autran, o Teatro Cacilda Becker e o Teatro dos Sete.
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Extraído de Panorama do Teatro Brasileiro, 3ª Edição, revista e ampliada. A obra foi lançada em 1962, cabendo ainda registrar que o presente capítulo, devido à sua extensão, está aqui bastante reduzido. Mas recomendo com entusiasmo a leitura deste volume, realmente imprescindível para os que desejam conhecer mais profundamente a história de nosso teatro.
         

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