quarta-feira, 6 de abril de 2011

Variedades da experiência cômica

Eric Bentley


Só uma comédia, e nada mais que uma comédia, é uma comédia.
(HENRY JAMES)


          Os teóricos têm buscado, de todas as formas, uma definição quase-final para a comédia. O procedimento é, ou legislar a priori, "A essência da comédia é A, B, e C", ou, se o método indutivo apresenta associações mais científicas, generalizar a partir de uma escola ou prática particulares - a que o teórico gostar mais - e dizer: "A essência da comédia é D, E e F". Os dois métodos dão uma resposta precisa e este é um motivo suficiente para não adotar nenhuma delas.

          Nem encontraremos uma chave para a arte da comédia na psicologia do riso. Devemos lembrar que o título do livro esplêndido de Henri Bergson é O Riso. Seu assunto principal não é a comédia, mas um subproduto da comédia. Sua primeira função é a análise da natureza humana, não a avaliação de obras de arte. O que significa a comédia como obra de arte?

          Para responder essa pergunta, teríamos que ponderar sobre vários fenômenos que têm sido chamados de comédia, levar em consideração o que eles têm em comum, e, na pior das hipóteses, descobrir por que recebem o mesmo nome. Termos críticos nunca podem significar mais do que aproximações e conveniências. Quando tornam-se campos de batalha, quando alguém deseja saber qual das variedades significa a coisa real, escapamos do discurso racional para a superstição.

          Pensando em um grande número de peças conhecidas como tragédias e comédias, podemos apreciar todo o bom senso de uma das dicotomias de Bergson. O escritor trágico geralmente tem se preocupado com as coisas derradeiras, com a morte, com o significado da vida como um todo, com o "destino" e a "sorte", com o Homem em relação com o universo e com o aspecto da eternidade.

          Com relação a essas preocupações, em qualquer escala, podemos analisar os esforços trágicos de Sófocles, Shakespeare, Strindberg e O'Neill. Por outro lado, a comédia tem se preocupado mais com o social, o histórico, o temportal. Onde o escritor trágico procurou retratar o indivíduo e vê-lo como o Homem universal, o escritor cômico tem tentado reproduzir tipos, grupos e classes, e, portanto, mostrar as diferenças entre os homens.

          Partindo de tais divergências e preocupações, poderíamos elaborar dois esquemas opostos de vida, um, religioso ou quase-religioso, postulando um significado definitivo para a vida, o outro secular e ético, postulando um significado moral imediato para a vida. Podemos dizer que a tragédia começa com a calamidade e termina com a beleza, a reconciliação e a esperança; a comédia começa com o riso e termina em julgamento, reprovação e talvez com amargura...

          Tais elaborações podem ser ilustradas em várias peças importantes; possuem o mérito de clarear um pouco as coisas para nós; mas espero que possamos ver também o perigo de elaborá-las em demasia. Quanto mais adiante formos, tornam-se mais ricas e mais atraentes nossas racionalizações de tragédia e comédia. Mas é isso que pode nos confundir.

          Macbeth sempre foi encarada como uma tragédia. Ela afirma a vida do herói? Termina em reconciliação, beleza e esperança? Obviamente que não. A tragédia é um tópico que tenta o crítico a dizer lindos absurdos. Neste assunto, ainda mais do que em outros, ele tem a tendência de generalizar, ou simplesmente jogar, com cadenzas inteligentes. O problema é que a tragédia tem sido sempre uma coisa diferente para cada praticante maior. E se há alguma coisa mais enganosa do que uma descrição correta do trágico, essa coisa é uma descrição correta do cômico.

          Se procurarmos nos arquivos históricos, encontraremos elementos cômicos em quase toda parte e uma grande aquisição cômica, praticamente em lugar algum. Talvez isso seja ainda mais raro de ser encontrado do que a grande tragédia. Também não é fácil discernir uma coerência ou continuidade como a que encontramos na história da tragédia. Nossa sociedade industrial não parece ser o lar adequado para a musa cômica.

           A verdadeira classe dominante da sociedade, a burguesia, tem sido, por séculos, o alvo da sátira, precisamente porque parece ser insconsciente, desprovida de humor, limitada e aculturada. Os reis riam das tentativas de M. Jourdain em se tornar aristocrata, mas, agora, M. Jourdain encontra-se no trono e não foram necessárias maneiras aristocráticas para mantê-lo lá.

            O Ensaio sobre a Comédia, de George Meredith, por todas as suas frases de efeito, afetação e arbitrariedade, tornou claro, para muitos de nós, a base social da comédia crítica. A comédia de um Molière ou de um Congreve, poderíamos concluir, pressupõe uma minoria compacta de aristocratas governantes que possuem cultura sem ler livros e que são inteligentes sem necessariamente ser especulativos. Formam um grupo para quem a conversação é o meio principal de expressão e cujos valores são, conseqüentemente, os que Samuel Butler teria chamado de laodicianos, isto é, mundanos embora não necessariamente egoístas, despreocupados mas graciosos, negligentes mas razoáveis, satíricos mas não necessariamente sarcásticos...

          Se esta análise social é pelo menos metade verdadeira, não precisamos ir muito longe para procurar uma explicação para o declínio da alta comédia. Um Sheridan ou um Goldoni, nos quais sobreviveu o espírito da comédia clássica do século XVIII, não são característicos de sua época, não apenas por seu gênio, mas por sua adesão à fórmula antiga. E ainda temos Holberg para nos lembrar que essa análise não é totalmente verdadeira e que a tradição de Molière significa tanto Louis XIV e Versailles, como também o toque comum existente na alta comédia.

          Talvez o período mais improdutivo da história da comédia seja a primeira metade do século XIX. Chegamos a desejar que Goethe, um leitor assíduo de Molière, tivesse dirigido sua pena para a comédia. Chegamos quase a pensar que descobrimos o criador da comédia moderna em Alfred de Musset, cujas peças curtas, a princípio tão insignificantes ao lado das monstruosidades "intelectualóides" de Victor Hugo e das também mosntruosidades "simplistas" de Scribe, e tendo posteriormente emergido como o dramaturgo francês mais encantador entre Beaumarchais e Rostand.

           Ou poderíamos redescobrir a genialidade de O Inspetor Geral, de Gogol, no qual Molière parece reviver. Mas nem Musset nem Gogol são dramaturgos suficientemente grandiosos para ficar em nossas mentes como criadores de uma nova comédia. Qualquer renascimento que desejemos dar para a comédia deve ser tratado - juntamente com o "renascimento" geral do drama - quase que no final do século.

          O mestre de uma nova comédia, se tivesse que existir, deveria ser moderno e ao mesmo tempo clássico, deveria realmente encontrar uma posição adequada para a comédia e o comediante no mundo moderno, deveria saber com que termos poderia se dirigir com vantagens à sociedade burguesa, deveria ser mesmo um gênio que pudesse criar uma nova forma e um novo padrão, pelos quais as outras formas seriam julgadas.

          Um homem que atingiu esse objetivo foi Bernard Shaw. Já descrevi seu gênio romântico e sua invenção da comédia naturalista. Podemos ainda examinar algumas de suas peças como obras de arte individuais, isto é, como um todo satisfatório.

          A tese de que Shaw e a alta comédia moderna são uma coisa só, como também o seriam Molière e a alta comédia clássica, não seria absurda. Seria uma tese mais inteligente do que aquelas que encontraram o seu caminho na imprensa. Mas, de qualquer maneira, não seria correta. A comédia da corte poderia, como já nos foi dito, pertencer a um grupo homogêneo, do qual talvez um único gênio pudesse resumir para nós através de sua obra.

          A comédia moderna - se não temos certeza de muita coisa, pelo menos podemos ter desta - não pertence a nenhum grupo homogêneo. O satírico moderno não repousa em nenhuma afirmação geralmente tida como verdadeira. Segura-se em qualquer salva-vidas que surja em seu caminho no oceano tumultuado. Nossa época não produz nenhuma chave de algum reino (exceto nos best-sellers).  Não oferece nenhuma summa de verdades estabelecidas.

          Se uma pessoa afirmar que descobriu o discurso do século XX, podemos saber que se trata de um charlatão e termos até a suspeita de que está sendo muito bem pago para isto. Não "a única verdadeira religião", mas "a variedade das experiências religiosas" é a frase dos tempos. Podemos substituir a palavra religião por qualquer outra, de acordo com o assunto que estiver em discussão. E portanto: a variedade das experiências cômicas.

           Em um capítulo sobre a comédia moderna, deveria ser discutido outros autores além de Shaw e, como este livro até aqui tem apresentado uma abundância de generalizações, podemos discutir trabalhos particulares. Digamos, duas obras de Shaw e duas outras peças. Nos anos atuais, estamos aprendendo a ler os líricos mais cuidadosamente, com maior riqueza e com mais atenção quanto à sua estrutura. Sejamos atores, diretores, freqüentadores de teatro ou estudantes, precisamos também aprender a ler bem as peças.

           As possibilidades são muito ricas. Existem as deliciosas comédias folclóricas de Garcia Lorca e J. M. Synge. Ou podemos saltar para trás, para o início do século XIX, para encontrar o protomoderno German Grabbe, cuja obra sem tradução, Scherz Satire Ironie und tiefere Bedeutun - "Pilhéria, Sátira, Ironia e Profundo Significado" - é uma das jóias da comédia fantástica, um ancestral de Him, a peça tão aplaudida de E. E. Cummings.

           A Comédia do Amor, de Ibsen, necessita apenas de uma boa tradução em versos para se revelar como uma das comédias mais notáveis do século. As comédias de Strindberg necessitam apenas ser retiradas de debaixo das cobertas da ignorância ou da solenidade que, no momento, escondem o autor e a sua obra de nossa vista.

          Semelhantes a Strindberg em sua acidez, estes são os dois maiores talentos cômicos dos últimos cem anos: Carl Sternheim e, antes dele, Henri Becque. O último é conhecido, quanto mais não seja, por sua peça diabolicamente inteligente, ainda que proibitiva, Les Corbeaux, uma fatia de vida à moda naturalista, como nem os porta-vozes do movimento, como Zola, poderiam ter criado.

          No entanto, a obra-prima de Becque é La Parisienne, uma grande comédia que deveria ter dado o coup de grâce à comédia ligeira francesa a respeito de adultério e do tipo de pessoas que apresenta. Infelizmente, as peças não possuem essa influência. Como Shaw, Sternheim tentou colocar a burguesia de volta a seu lugar clássico, de medida da alta comédia. Seu ciclo, intitulado "Da Vida Heróica da Burguesia", é uma obra-prima manqué.

          Mas, diferentemente de Shaw, Sternheim não consegue apresentar um ponto de vantagem para o seu julgamento. É uma sátira brilhante. Mas como não é mais possível rir da burguesia, como nossos dramaturgos da Restauração faziam, ele só consegue encontrar um local para tornar engraçado - a Boêmia, e muito possivelmente da sua costa marítima, ou seja, de nenhum lugar a todos.

            Quando se pensa em todo o talento cômico de nossos palcos modernos, fica-se impressionado com o fato de que quase todos se dedicaram a peças não cômicas, como Juno e o Pavão, de Sean O'Casey. Para mim, neste aspecto Tchecov e Schnitzler são os proeminentes. Tchecov não escreveu nada melhor do que O Jardim das Cerejeiras e Schnitzler, nada melhor do que Intermezzo.

          As duas peças foram descritas por seus autores como comédias, mas em nenhum dos casos aceita-se a descrição a não ser como um comentário irônico sobre a peça. Pode-se dizer que existem elementos cômicos nas duas peças. Pode-se dizer também que podemos, se quisermos, reformular nossas noções de comédia para que sirvam a elas. Mas o que podemos, com certeza, é admitir que ambas pertencem a um gênero intermediário, que ambas são dramas altamente originais. Para se medir como o termo comédia tornou-se confuso, basta examinar o título de uma das obras mais trágicas de Schnitzler: A Comédia da Sedução.

           Se devemos deixar que nossa escolha de peças a serem analisadas seja governada pelo significado individual, pela diferença umas das outras, por sua diferença de Shaw, ou pela possibilidade de serem conhecidas pelo leitor, uma escolha inteligente cairia sobre Oscar Wilde e Luigi Pirandello, dois dos melhores e mais conhecidos comediógrafos modernos, um dos quais fica próximo dos limites superiores da comédia, que é a farsa, e o outro, próximo dos limites inferiores da mesma comédia, que é a tragédia. 
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Trecho extraído de "O dramaturgo como pensador", escrito em 1946 e lançado no Brasil em 1987 (Editora Civilização Brasileira, tradução de Ana Zelma Campos)

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