terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Teatro/CRÍTICA

"A inevitável história de Letícia Diniz"

............................................................................
Comovente libelo contra o preconceito


Lionel Fischer


Preso na Suíça ao tentar entrar clandestinamente na Itália, onde continuaria a exercer a prostituição, o travesti Letícia Diniz passa uma noite na cadeia, durante a qual estabelece intensa e tumultuada relação com o carcereiro Leon - ameaçado de deportação, a única esperança do travesti é convencer o carcereiro a libertá-lo, antes que o dia amanheça e chegue o delegado, quando então estará perdido.

Eis, em resumo, o enredo de "A inevitável história de Letícia Diniz", peça de Marcelo Pedreira baseada em seu romance homônimo. Após cumprir temporada no Teatro Gláucio Gill, a montagem pode agora ser assistida no Espaço Cultural Sérgio Porto. O autor também assina a direção do espetáculo, que tem elenco formado por Rosanne Mulholland e Saulo Rodrigues.

Sendo a hipocrisia uma das características mais marcantes de nossa sociedade, é muito provável que cem homens, escolhidos ao acaso e instados a darem sua opinião sobre travestis, manifestem pelos mesmos sentimentos de repulsa. No entanto, sabemos que não são poucos os que requisitam os "préstimos" de tais criaturas, e muitas vezes levando suas mulheres a tiracolo. Não sendo psicanalista, não sei  explicar o fenômeno. Posso apenas supor que, para muitos homens, deve ser realmente muito inquietante se deparar com uma "mulher com pênis"...

No presente caso, o carcereiro se encaixa como uma luva no perfil do machão convencional que, diante de um travesti, encontra inenarrável prazer em humilhá-lo, torturá-lo com provocações abjetas, fazendo absoluta questão de representar o papel de algoz, totalmente empenhado em desconsiderar qualquer possibilidade de que aquele ser possa conter um mínimo de humanidade e, portanto, ser merecedor de respeito e compreensão.

Aos poucos, porém, à medida que Letícia vai contando sua dolorosa história, que evidencia seu legítimo desejo de ter um corpo em consonância com sua alma, Leon - também em função de sua história pessoal, que aqui não cabe revelar, pois privaria o espectador de algumas surpresas - começa a alterar sua postura, o que possibilita um final surpreendente.

Bem escrito, contendo ótimos personagens, pleno de humanidade e contundente em sua crítica a uma sociedade que, além de hipócrita, cultiva com volúpia a intolerância, o texto de Marcelo Pedreira merece ser encarado como preciosa denúncia não apenas contra este tipo de preconceito, mas contra todos que impedem os homens de estabelecer relações mais respeitosas e verdadeiras.

Com relação ao espetáculo, o diretor optou pelo único caminho possível: renunciar a todas as possíveis firulas formais e investir na relação entre os dois personagens. E a tal postura devemos creditar o principal êxito da montagem, pois todas as marcas visam traduzir o que de mais importante existe no caráter e na relação dos personagens. 

Na pele de Letícia, a atriz Rosanne Mulholland consegue materilizar todos os conteúdos propostos pelo autor, valendo-se de uma composição isenta de exageros, tanto vocais como corporais. E se é evidente que está lindíssima em cena, seu principal mérito consiste em ter sido capaz de revelar a beleza interior da personagem.

A mesma eficiência se faz presente no trabalho de Saulo Rodrigues, já que traduz de forma convincente tanto a repulsa inicial do personagem quanto seus sentimentos subseqüentes. Mas me permito sugerir ao ator que eleve um pouco o tom de voz em algumas passagens, muitas vezes praticamente inaudíveis.

Na equipe técnica, são corretas a cenografia de Marcelo Pedreira e Marcelo Chaffin, assim como a iluminação de Saulo Rodrigues e os figurinos de Cláudio Marra.

A INEVITÁVEL HISTÓRIA DE LETÍCIA DINIZ - Texto e direção de Marcelo Pedreira. Com Rosanne Mulholland e Saulo Rodrigues. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.


   

Nenhum comentário:

Postar um comentário