segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

                              Sotigui Kouyaté
                                     4 perguntas de Egrégora*

De origem africana, Sotigui Kouyaté é griot e ator de teatro e cinema. Os griots são músicos, cantores e contadores de história, mas, sobretudo, mestres da palavra. Sábios genealogistas, itinerantes ou fixos, isto é, ligados a determinadas famílias tradicionais, na África do Oeste, os griots têm função fundamental na conservação e transmissão da história. No passado, foram conselheiros dos reis e, ainda hoje, são mediadores no estabelecimento da calma e do equilíbrio entre os indivíduos. Existem mais de cem famílias de griots e os Kouyaté foram os primeiros a surgir, no século XI.

Como ator, além de ter participado de inúmeros filmes, Sotigui Kouyaté colabora, há vinte anos, com o trabalho do encenador inglês Peter Brook na companhia Théâtre des Bouffes du Nord, na França. Entre 2002 e 2003, Sotigui ministrou três workshops no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde desenvolveu um trabalho sobre a sensibilidade, a atenção e a escuta do ator. Apesar de viver numa cidade européia, Sotigui Souyaté mantém forte ligação com sua terra, sua cultura e sua tradição, o que se evidencia não apenas no seu discurso, mas também na sua prática artística que não separa vida e arte: "A vida não é uma coisa e o teatro outra. Os dois devem estar colados, andar juntos, fazer sentido juntos".

Egrégora: os ensinamentos que você nos passou estão ligados a uma prática de iniciação ao conhecimento que existe na África. Seu trabalho está estruturado, principalmente, sobre a sensibilidade, sobre a empatia, em detrimento da técnica. Você poderia falar um pouco sobre isso?

Sotigui: Certamente. Eu acredito que cada coisa na vida tem um início. E que o próprio início tem antes um começo que chamamos princípio. Esse princípio é onde cada coisa nasce, e pode ser chamado de raiz. Na minha cultura, que é africana, mais precisamente malinké, (1), minha etnia, nós pensamos com convicção que a primeira alma dos seres é uma árvore. E a árvore tem uma raiz que lhe permite se fixar profundamente na terra. Para que um homem esteja em equilíbrio, dizemos: "Plante seus pés na terra!". Logo, os seres começam por suas raízes. Em todas as coisas, mesmo para uma casa, a base é essencial, pois a casa não se constrói de cima para baixo, mas de baixo para cima.

Essa base é o que chamamos de fundação. Uma casa precisa de uma fundação sólida para que se erga firme e possa suportar o peso de outros andares sobre ela. É por isso que sempre digo às pessoas para concentrarem sua busca mais em si mesmas e menos no exterior. É o interior que dá lugar ao exterior. Partimos do interior, nossa gestação é feita na interioridade antes de se exteriorizar.

Ora, o mundo de hoje está na superficialidade do exterior e esquecemos que o essencial vem do fundo ou do mais profundo de nós mesmos, que são as forças reais que formam a base da nossa existência: nossa cultura. Minha primeira cultura é a minha língua, é ela que me identifica. Em todas as coisas eu penso que o essencial interiormente é a sensibilidade, cuja importância o mundo não reconhece mais, por isso ela está em falta.

Pouco a pouco nos afastamos uns dos outros, isto é, estamos menos sensíveis uns aos outros. O individualismo, o isolamento, o eu ganharam espaço sobre nós. Se existe algum lugar onde há a possibilidade de troca, é na arte, qualquer que seja a sua natureza, pois nela ainda temos o direito de olhar, o direito de falar. Nos dias de hoje, a palavra perdeu seu valor, em vários sentidos. Se não existe o pensamento, o espírito e a palavra, nós não somos humanos...e a palavra, ultimamente, perdeu o seu lugar.

O trabalho no teatro, que temos a sorte de praticar, possibilita uma abertura em nome da palavra, e depende de nós fazermos bom uso dela, seja nos espetáculos teatrais ou nas sessões de contação de histórias. As pessoas vêm para escutar, num mundo onde não há mais escuta. Não se pode falar em troca quando não há comunicação. E não há comunicação possível sem encontros, os quais não são possíveis sem uma verdadeira escuta.

No teatro, as pessoas vão ao encontro umas das outras e de si mesmas, para aprender algo onde há uma verdadeira troca. Sem a sensibilidade nada disso seria possível. As escolas de teatro não são ruins, mas o aluno quando chega já traz consigo uma base à qual elas não podem ser superiores, mas que, ao contrário, devem completar. Assim, a técnica, no meu ponto de vista, é feita para nos ajudar a canalizar, a veicular aquilo que já trazemos conosco e que ela não pode substituir.

Se amanhã você precisar dirigir pessoas, eu aconselharia a fazer seus atores trabalharem na sensibilidade e sobre o tema da sensibilidade. E se você tiver que formar alunos, fale da técnica, fale de tudo, mas fale da sensibilidade. Dê exercícios que os obriguem a prestar atenção no outro, a perceber o outro. É isto a sensibilidade. Ser sensível é não se esquecer de si mesmo na procura de escutar o que se passa fora. Resumindo bem...é isto.

Sabemos que você ministra workshops no mundo inteiro e imaginamos que eles se desenvolvem diversamente segundo cada cultura. Este é o segundo trabalho que você desenvolve com atores brasileiros. Quais são suas impressões a respeito?

É verdade, eu tive a sorte, a honra e o privilégio de ministrar workshps praticamente no mundo inteiro. Ná África, dizemos que o sábio não é aquele que acha que sabe e sim aquele sabe verdadeiramente, honestamente, que cada dia terá algo a aprender com outra pessoa. Desde que cheguei no Brasil eu aprendi muito, sinceramente, e continuo aprendendo. Estou descobrindo o Brasil.

Há dezesseis anos recusei uma proposta de workshop aqui e, no entanto, nos últimos quatro anos já é a terceira vez que venho. Enfim, é uma situação que fala por si mesma. Aqui eu me sinto como na África, onde existe calor humano, onde o ser humano está no núcleo de toda a arte. Um teatro que não tem o homem no seu centro é um crime. Existem países europeus, e isso não é uma crítica, porque eu não critico, só digo o que vejo, eu conto o que vejo, sou um griot, um homem da palavra, então, existem lugares onde as crianças estão separadas dos adultos.

Na África, as crianças participam de tudo, elas crescem com uma liberdade corporal, uma liberdade de espírito, uma abertura que eu pude perceber também aqui, desde minha primeira vinda em 2000. Já é alguma coisa quando as crianças estão bem presentes. Elas são a esperança, o futuro de um país; se as afastamos durante muito tempo da nossa convivência, como, um dia, lhes diremos que é a sua vez de tomarem as rédeas? Eu acho que dar uma atenção particular às crianças é cultural, é um valor que nunca se pode perder.

Hoje existem pessoas doentes por toda parte, por exemplo, você paga um dinheiro para falar a alguém que está sentado e te escuta. Na verdade, a força do psicanalista está na escuta que ele te oferece. Na África, estamos doentes por outros motivos, mas damos importância capital aos encontros e toda a nossa sabedoria vem desta direção. Pois é através deles que aprendemos e nos educamos.

Dizemos que o estrangeiro é um homem rico porque ele nos traz aquilo que não sabemos. Tradicionalmente, todas as noites ele conversa com a família, todos à sua volta lhe fazem perguntas sobre o lugar de onde ele vem, como é, se é bom ou ruim. Na África, acreditamos que o pior mal é a ignorância, isto é, não saber o que se passa com os outros. Temos provérbios que nos ensinam a não nos perdermos no olhar do outro. Olhar, olhar bem para nos encontrarmos no olhar do outro.

Dessa maneira, veremos que há mais coisas que nos aproximam do que coisas que nos afastam, e que podemos encontrar nas outras pessoas todas as nossas qualidades, e caminhar em direção ao melhor de nós mesmos. Daí, mais uma vez, a importãncia e a necessidade dos encontros. Se tomamos um país como o Brasil, que é um país de encontros, um país de misturas, o que há de mais rico do que isso? As pessoas vêm de todos os lugares, se misturam, se mestiçam, que riqueza se colocarmos juntas todas essas fortunas!

Qual a necessidade de ir procurar em outro lugar? É de outros lugares que se deve vir procurar aqui onde tudo está reagrupado. Aqui no Brasil eu não venho com a pretensão de dar, mas de receber. Eu me enriqueço vindo aqui. Existe uma maior disponibilidade dos atores brasileiros em comparação aos atores europeus, uma maior disponibilidade corporal, uma maior disponibilidade intencional.

No Brasil, os atores são muito mais livres do que em certos países onde tudo é muito controlado. Uma pessoa aprisionada não pode nada, ela precisa de liberdade de comportamento, liberdade de falar, liberdade de agir. Eu não estou falando de sistemas de organização legislativa ou política, estou falando do povo; este é um povo livre em seu corpo, em seus movimentos e em seus atos. Os atores brasileiros são muito mais simples do que os atores europeus sempre tomados pela racionalidade, e esta disponibilidade corporal e de espírito é uma qualidade rara.

É visível a influência dos ensinamentos africanos na vida e na obra de Peter Brook. Você freqüentemente menciona fatos muito importantes, relacionados ao encontro pessoal e profissional com ele. Como acontece essa troca artística e humana entre vocês dois?

O nome Kouyaté simboliza a fidelidade e a verdade e é em nome dessa fidelidade que eu fui passar um ano em Paris e acabei ficando vinte. Um irmão a gente não escolhe, mas um amigo sim. Assim, nossa amizade se baseia em duas coisas: o respeito e a confiança. Ele diz que eu dei muita coisa pra ele. É verdade. Mas ninguém dá nada sem receber...O que possibilitou nossa aliança foi que ele soube apreciar e respeitar o que tenho em mim e vice-versa. Nas nossas diferenças, nós nos completamos. 

Eu não diria que foi nosso encontro que abriu certas portas a Brook. Ele é um pesquisador, alguém que está à procura; esta é uma qualidade que ele sempre teve. Nós temos a mesma iniciativa em relação aos encontros. Eles fazem parte da minha tradição e foram a preocupação de Brook mesmo antes de ele criar o Centro Internacional de Pesquisas Teatrais. 

Primeiramente ele foi ao encontro de outros povos para se enriquecer, depois criou o Centro. Brook compreendeu que, nas diferenças, encontramos os caminhos da complementação, o que também define o espírito da civilização africana. Assim, Brook e eu
tivemos um encontro, fizemos uma aliança de seres que não estão em contradição, soubemos valorizar um ao outro com o maior respeito. Na relação de colaboração, não existem grandes e pequenos, é preciso saber se respeitar e estabelecer a confiança entre as partes.

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(1) Os malinké  foram, entre a Idade Média e a era colonial, um povo de guerreiros conquistadores, e são considerados, ainda hoje, os maiores comerciantes da África do Oeste, em regiões da Guiné, Senegal, Mali e Costa do Marfim.

* A Egrégora é formada por Ana Achcar, Anna Wiltgen, Fernanda Azevedo, Isaac Bernat, Joice Niskier e Paulo Pontvianne. A organização, os cortes e a tradução da entrevista foram realizados por Anna Aachcar e Anna Wiltgen. Esta entrevista foi feita em agosto de 2003.

A presente entrevista, aqui um pouco reduzida, foi extraída da revista "Folhetim", nº 19/2004.

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