quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sêneca e a reflexão sobre as contradições
da condição humana

Lúcia Sá Rebello


Lúcio Anneo Sêneca nasceu em Córdoba, Espanha. Seu pai foi Anneo Sêneca - Sêneca, o velho -, conhecido como retórico e do qual restou apenas uma obra escrita, intitulada "Declamações". Sêneca, o moço, foi educado em Roma, tendo estudado retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo, tornou-se conhecido como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e, mais tarde, questor (magistrado encarregado das finanças).

Em Roma, o triunfo político não acontecia impunemente, e a notoriedade de Sêneca suscitou a inveja do imperador Calígula, que morreu antes de poder destruí-lo. Dessa forma, Sêneca pôde continuar vivendo com relativa tranqüilidade, mas essa não durou muito tempo. Em 41 d.C, foi desterrado para a Córsega sob a acusação de adultério, supostamente com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico.

Na Córsega, Sêneca viveu cerca de dez anos com grande privação material. Dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos, entre os quais os três intitulados "Consolos", nos quais expõe os ideais estóicos clássicos de renúncia aos bens materiais e de busca da tranqüilidade da alma por meio do conhecimento e da contemplação.

Em 49 d.C, Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio, foi condenada à morte. O imperador casa-se, então, com Agripina. Pouco tempo depois, ela manda chamar Sêneca para se encarregar da educação de seu filho Nero, tornando-o, em 50 d.C, pretor.

Sêneca casou-se com Pompéia Paulina e organizou um poderoso grupo de amigos. Logo após a morte de Cláudio, ocorrida em 54 d.C, o escritor vingou-se do imperador com um texto que foi considerado a obra-prima das sátiras romanas, "Transformação em abóbora do divino Cláudio". Nessa obra, Sêneca critica o autoritarismo do imperador e narra como ele é recusado pelos deuses.

Quando Nero foi nomeado imperador, Sêneca tornou-se seu principal conselheiro e tentou orientá-lo para uma política de justiça e de humanidade. Durante algum tempo, exerceu influência benéfica sobre o jovem, mas, aos poucos, foi forçado a adotar uma atitude de complacência. Chegou ao ponto de redigir uma carta ao Senado para justificar a execução de Agripina em 59 d.C, pelo filho. Nessa ocasião, foi muito criticado por sua postura frente à tirania e à acumulação de riquezas de Nero, incompatíveis com as suas próprias concepções filosóficas.

O escritor e filósofo destacou-se por sua ironia, arma da qual se utilizava com muita sabedoria, principalmente nas tragédias, as únicas do gênero na literatura da antiga Roma. Conhecidas como versões retóricas de peças gregas, elas substituem o elemento dramático por efeitos violentos, como mortes em cena e discursos agressivos, demonstrando uma visão mais trágica e individualista da existência.

Sêneca deixou a vida pública em 62 d.C. Dentre seus textos constam a compilação científica "Problemas naturais", os tratados "Da tranqüilidade da alma", "Da vida beata", as cartas reunidas em "Sobre a brevidade da vida" e, talvez sua obra mais profunda, as "Cartas morais" dirigidas a Lucílio. As "Cartas morais", escritas entre os anos 63 d.C e 65 d.C, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica aos vícios da época.

Acusado de participar na conjuração de Pisão, em 65 d.C, Sêneca recebeu de Nero a ordem de suicidar-se, que executou com o mesmo ânimo sereno que pregava em sua filosofia. Conta-se que sua morte foi uma lenta agonia. Abriu as veias do braço, mas o sangue correu muito lentamente; assim, cortou as veias das pernas. Porém, como a morte demorava, pediu a seu médico que lhe desse uma dose de veneno. Como este não surtiu efeito, enquanto ditava um texto a um dos discípulos, tomava banho quente para ampliar o sangramento. Por fim, fez com que o transportassem para um banho a vapor e, ali, morreu sufocado.


Da obra

Chama-se epístola a composição datada e escrita por um indivíduo ou em nome de um grupo com o objetivo de ser recebida por um destinatário. O termo tem uso antigo e constitui gênero literário importante a partir do conjunto de textos do Novo testamento que ficaram conhecidos por epístolas. Assim, distingue-se uma epístola de uma carta comum, pois não se destina apenas à comunicação de fatos de natureza pessoal ou familiar, aproximando-se mais da crônica histórica que procura relatar acontecimentos do passado.

A utilização do termo alarga-se, posteriormente, a todo tipo de correspondência privada ou oficial, literária ou filosófica, religiosa ou política, tornando-se difícil estabelecer com rigor a diferença entre uma epístola e uma carta. À arte de escrever epístolas ou formas registradas de correspondência escrita entre indivíduos dá-se o nome de epistolografia.

Na literatura latina, são referências obrigatórias do gênero epistolar as Epístolas, de Horácio, as cartas de Varrão, Plínio, Ovídeo e, sobretudo, de Cícero, que fixaram um modelo que foi fartamente imitado. Como referência obrigatória, deve-se incluir os textos epistolares de Sêneca, cujo tom coloquial define que o estilo que melhor convém a uma carta não deve conter um acúmulo de conhecimentos dos diversos ramos do saber ou ser afetado.

Sêneca é o mais importante representante da filosofia estóica em seu último período, e suas preocupações são, em essência, éticas. É um filósofo de espírito mais prático que teórico. Afasta-se, em alguns pontos, do estoicismo, o que resulta em um ecletismo de caráter moralista, preocupado com a filosofia enquanto ensinamento e consolo para a vida.

Para Sêneca, a filosofia gira em torno do "sábio". A sabedoria e a virtude são a meta da vida moral, o único bem imortal que possuem os mortais. A sabedoria consistirá, segundo a doutrina estóica, em seguir a natureza, deixando-se guiar por suas leis e seus exemplos. Estando a natureza regida pela razão, obedecer-lhe é obedecer à razão, podendo o homem, assim, ser feliz.

A felicidade consiste em adaptar-se à natureza para manter um equilíbrio que nos deixe a salvo das vaidades da fortuna e dos impulsos do desejo que obscurecem a liberdade. A liberdade, então, configura-se como a tranqüilidade do espírito, a imperturbabilidade do ânimo frente ao destino, ou seja, a ataraxia. Segundo Sêneca, "O melhor é dirigir-te para a sabedoria, onde encontrarás, ao mesmo tempo, tranqüilidade e grandes possibilidades de crescimento". (LXXIV)

As cartas que Sêneca envia ao amigo Lucílio fazem parte de uma longa tradição do gênero epistolar, que se prolonga em autores modernos. Essas cartas, escritas entre os anos 63 e 65 d.C, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Não se sabe se Lucílio existiu ou se configura apenas em mero interlocutor imaginário criado pelo filósofo para desenvolver a sua filosofia à maneira de diálogo, o que foi bastante comum durante muitos séculos.

Nas cartas a Lucílio, Sêneca aborda diversas questões. É um otimista. Considera que todas as pessoas trazem consigo a semente de uma vida honesta, embora os bons exemplos exerçam um papel essencial na adoção das virtudes. A educação moral consiste em fazer com que os atos correspondam aos princípios éticos. Por vezes, a vontade é fraca ou deficiente. O homem possui uma natureza que o predispõe quer para o bem quer para o mal, e nem sempre possui a força de vontade e a sabedoria suficientes para optar pelo bem em detrimento do mal.

Sêneca traça um programa de heroísmo passivo, que exige uma reformulação da mente para que não se impressione com o horror das dores, da miséria e da morte. Os homens devem auxiliar uns aos outros e viver em sociedade, professando o afeto e a estima. A natureza exige o amor dos elementos que a compõem. Causar dano a outro homem é algo irracional que vai contra a própria essência da natureza.

A morte não é um bem nem um mal, podendo tornar-se uma libertação quando as circunstâncias da vida condenam o homem a uma escravidão incompatível com a liberdade. Dessa forma, está aberto o caminho para que o homem deixe a vida. Nada os obriga a viver na miséria ou no cativeiro. Essas são apenas algumas das inúmeras questões tratadas nas 29 cartas de Sêneca dirigidas a Lucílio que estão reunidas neste volume.

Sem dúvida, muitas das observações e conclusões que fazem parte dessas cartas poderiam ser aplicadas às inquietudes do mundo atual. Sêneca escreveu as mais belas máximas de pureza da vida; nele se uniram todas as perfeições do pensamento humano, a elevação do espírito e o entusiasmo pela virtude. As cartas a Lucílio demonstram sua larga experiência e contêm as reflexões mais profundas sobre as contradições da condição humana. Que o leitor aprecie a leitura desta obra, fruto de um grande pensador da vida e de suas imprevisibilidades.
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As informações sobre o presente volume encontram-se no final da carta que se segue.

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