sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Ponto de fuga"

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As lavas de um vulcão


Lionel Fischer


Embora a princípio possa causar uma certa estranheza, julgo procedente iniciar a crítica do presente espetáculo falando um pouco de música. E mais especificamente de duas obras fundamentais de J. S. Bach. Na primeira, "O Cravo Bem Temperado", o genial compositor criou 48 prelúdios e fugas, sendo um prelúdio e uma fuga para cada tonalidade maior e menor. Na segunda, "A Arte da Fuga", que a morte impediu Bach de completá-la, a intenção era a de criar um conjunto de exemplos das técnicas de contraponto - são 14 fugas, de diferentes formas, mas todas oriundas de um mesmo tema.

Com a introdução acima, minha intenção foi a de estabelecer um paralelo entre a fuga, em seu sentido estritamente musical, e as fugas das quais tantas vezes tentamos nos valer para escapar ao real da vida, para suplantar a dor de existir. No entanto, certas questões são tão implacáveis que às vezes somos induzidos a acreditar que não há escapatória, que nenhum contraponto haverá de compensar determinadas lacunas. Então, só nos restariam duas alternativas: simplesmente enlouquecer ou, através da Arte, buscar alguma forma de novamente se inserir na vida. E é exatamente isto - salvo monumental engano de minha parte - que o autor Rodrigo Nogueira buscou materializar na cena.

Em cartaz no Teatro Gláucio Gill, "Ponto de fuga" gira em torno de uma mulher que, ao assistir a uma peça de teatro, se identifica tanto com um personagem (um músico que perde a capacidade de compor e só consegue ouvir música em seus sonhos) que de certa forma o incorpora, numa desesperada tentativa - consciente ou não - de estabelecer algum tipo de contato com o mundo real, do qual já vinha se afastando há muito tempo. Escrita e dirigida por Rodrigo Nogueira, a obra chega à cena com elenco formado por Cristina Flores (Cristina), Michel Blois (Michel), Luísa Friese (irmã/empregada), Lucas Gouvêa (marido/garoto de programa) e Aline Fanju (amiga/musicista) - estas últimas personagens também são interpretadas por Lilianne Rovaris, às quartas-feiras; mas como assisti ao espetáculo na quinta, só posso avaliar a atuação de Aline.

Mesmo que tenha resumido o enredo da peça, me abstenho de detalhá-lo ainda mais, pois isso privaria o espectador de, em dado momento, perceber o contraponto entre o real e o imaginário. Ainda assim, cumpre ressaltar uma série de aspectos altamente positivos do presente texto, sem dúvida o melhor já escrito por Rodrigo Nogueira.

Além de ter criado ótimos personagens e uma ação que gera um permanente estado de inquietação, o autor se mostra capaz de externar uma angústia que não é apenas sua, mas de todos aqueles que não se contentam com uma existência mediana e previsível, que não se enquadram nos padrões ditados pela moral e os bons costumes, que trazem em si carências e desejos que às vezes sequer conseguem definir com clareza, mas que estão ali, represados, como as lavas de um vulcão que precisam necessariamente eclodir.

Em caso contrário, só lhes restará a loucura - renúncia total à vida - ou a Arte como possibilidade de nela se inserir, como já foi dito. Haveria, também, uma terceira hipótese: encarar a vida como um jogo de cartas marcadas, facultando ao destino a aleatória tarefa de escolher aqueles a quem beneficiaria com a sorte. E é exatamente esta a postura adotada pela maioria: a de aceitar navegar em um barco desprovido de leme, assim renunciando a assumir o papel de protagonista de sua própria história. E é justamente o oposto o que nos propõe Rodrigo Nogueira que, ao escrever este texto, renunciou à adolescência e tornou-se um homem.

Quanto ao espetáculo, este exibe uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. A estranheza e a imprevisibilidade são a tônica. Eventuais momentos de total obscuridade nos obrigam a um mergulho interno, não raro desconfortável, assim como certas pausas nos aclaram conteúdos incapazes de serem expressos através de palavras. Enfim, uma direção brilhante, a qual se soma um irrepreensível trabalho de todo o elenco. A começar pelo da protagonista, Cristina Flores.

Em minha opinião, trata-se de uma das melhores atrizes de sua geração, e não apenas por exibir vastos recursos expressivos. O que me parece fundamental, em Cristina Flores, é sua coragem de se entregar totalmente às personagens que interpreta, criando-as não a partir de maneirismos, mas de uma busca interna muitas vezes, ao que imagino, nada confortável. Mas certamente Cristina Flores sabe que contém tudo que é inerente ao humano. Para o bem ou para o mal. E por não temer confrontar-se consigo mesma, ou ainda que eventualmente temendo esse encontro, dele não abdica. E aí reside toda a diferença entre uma grande atriz e uma atriz essencial. Cristina Flores pertence a este segundo e seleto grupo.

Quanto aos demais atores, todos também se entregam sem relutância à complexa tarefa de materializar personagens de diferentes matizes, mas sempre com o mesmo vigor e sensibilidade.
E aqui retornamos ao contraponto: o drama vivido pelo músico que não consegue compor, assim como o da protagonista que já não se mostra capaz de viver o real da vida, só adquire uma dimensão trágica porque estão cercados, de uma maneira geral, por personagens perfeitamente enquadrados. E que obviamente não entendem comportamentos que contrariam suas expectativas.

Na equipe técnica, Paulo César Medeiros ilumina a cena com a indispensável dramaticidade, sendo irrepreensíveis a cenografia de Natália Lana, os figurinos de Priscila Barcelos e Rose Duarte, assim como a trilha sonora de Gabriel Fomm, que mescla sons indefinidos com, por exemplo, trechos da "Bachiana nº 7", de Villa-Lobos, gerando um resultado que contribui decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo.

PONTO DE FUGA - Texto e direção de Rodrigo Nogueira. Com Aline Fanju, Cristina Flores, Lucas Gouvêa, Luísa Friese e Michel Blois - ressaltando, mais uma vez, que Liliane Rovaris divide com Aline Fanju os personagens da amiga e da musicista. Teatro Gláucio Gill. Quartas e quintas, 21h.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. removi a postagem sem querer!
    queria dizer que tudo isso começou lá pelo início dos anos 2000, num teatro, o tablado, com um certo professor lionel fischer.
    isso eu não esqueço.
    e não tenho como agradecer.
    como digo no texto: é tanta música que não cabe na partitura. é um sentimento que não cabe em palavra.

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