terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os cegos

de Michel de Ghelderode
tradução de Aníbal Machado

PERSONAGENS:

De Witte
De Strop
Den Os
Lamprido (o caolho, rei do país dos fossos)

CENÁRIO:

Uma estrada em Brabante, perto de uma grande cidade.


(Ouve-se um canto. Peregrinos aproximam-se, pela estrada. É bastante lento o canto, se bem que entoado por homens de boa saúde. Os peregrinos são cegos que avançam, tateando com um bastão e segurando-se um ao outro pela ponta do casaco. Eis seu canto de marcha: "Congaudeant catholici retentur vivis celivi. Die ista.")

De Witte - E agora? Por mim eu paro! Se a nossa canção de peregrinos agrada a Deus, não comove as pedras do caminho. Meus pés estão sangrando e tenho a garganta seca que nem uma cratera.

De Strope - É preciso parar. Quando um de nós para, os três devemos parar; e quando um canta, devemos cantar; e quando um anda, andamos os três...Que destino!

Den Os - Que destino! Caminhar numa estrada que não enxergamos o fim, cantar uma lamentação em latim que não entendemos! Companheiros de miséria, proponho gemer os três com todas as nossas forças. Talvez alguém nos ouça, lá pelas nuvens ou na terra. Vamos gemer! Miserere!

Os Três - Miserere! Miserere! (Desafinados)

A Voz (Ao longe) - Miserere!

De Witte - Vocês ouviram? (Silêncio, ouvindo) Mais nada.

De Strope - Parecia que estava ouvindo...É a fome e a sede, a sede principalmente que nos perturba os sentidos.

Den Os - Eu ouvi. Sabem o que é? O eco. Vou experimentar: ou é o diabo que faz troça de nós e não responderá, ou então é o eco, que não mente e responde. Porque vou provocá-lo religiosamente.

De Witte - Sim, cante a missa para ele.

Den Os (Canta) - Kyyyy...

Os Três - Vamos escutar.

A Voz (ao longe, concluindo o cantochão) - Kyyyrie eleison...

De Witte - Está se vendo que não é coisa do diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa um eco de um convento!

Den Os - Ah! Se esse eco quisesse nos dar uma esmola, ou pelo menos nos arranjar um canecão de cerveja escura!

De Strop - Não percam a esperança! Nosso sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar, eu sei. É que nisso eu enxergo melhor que vocês.

De Witte - Mentiroso duas vezes! Você nasceu tão cego como nós.

Den Os - Mentiroso três vezes! Você é o mais cego de nós três!

De Strop - Amigos da minha dor, fiquem sabendo: já não estamos longe de Roma!

Den Os - Oh! Oh! Oh!

De Strop - Não sentiram que o sol ficou mais quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam, ainda agora ouvimos um eco que canta missa...Em Flandres, para falar a verdade, não existe eco: tudo é chato, tudo é plano...Nas montanhas, sim, existem ecos. Estamos nas montanhas! E esse pintor que nos pintou faz pouco, que esteve na Itália, não disse que devíamos atravessar as montanhas? Como se chamava o pintor? Aquele esquisito, que nos deu um florim?

De Witte - Acho que era um tal de Brueghel.

De Strop - Esse mesmo, Brueghel! Ele disse que passando as montanhas já não estávamos longe de Roma!

Den Os - Disse também que podíamos andar sem medo nem receio, que de qualquer jeito acabávamos chegando, porque todos os caminhos vão dar em Roma.

De Strope - Aleluia! Vamos ver o Papa em pessoa, o Papa que nos vai fazer um milagre: dar-nos de novo nossos olhos!

De Witte - Aleluia! Vamos ver um montão de maravilhas...Ou então não veremos nada! O certo é que Roma é a cidade mais mirífica da Cristandade, e que lá beberemos até não poder mais, comeremos à farta, e dormiremos e dançaremos...Sei, de boa fonte, que esses romanos são de natural alegre e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos para Flandres. Eu me planto nos degraus da Basílica, e acabo meus dias, ao sol.

De Strop - Eh! mau paroquiano! Faremos o que o Santo Papa nos mandar fazer!

Den Os - Quem sabe se ele não quer que a gente dê uma chegadinha até Jerusalém?

De Witte - Ou quem sabe, depois de nos ter olhado bastante, nos aconselha a voltar para o nosso país?

De Strop - Silêncio! Abram depressa os ouvidos! (Ouve-se um carrilhão longínquo)

Den Os - Agora sim! Sinos numa torre! Os sinos de Roma!

De Witte - Você está doido! É um carrilhão! E toca uma música que eu conheço, uma canção que em nossa terra se canta nos mercados.

De Strop - Vou dizer a vocês a verdade. É o célebre carrilhão de Roma! Como o Papa soube que três peregrinos flamengos estavam chegando, mandou tocar uma ária de Flandres, em nossa honra. Vejam só!

Os três (cantando a ária com o carrilhão) - La-la...la...bing...bong...(Gritando) Tocai, sinos benditos! Tocai para os que vêm de Flandres! Aqui estamos! Viva Roma e suas igrejas!

De Strop - Como dói ouvir, em terra estranha, os cantos de nossa velha pátria!

De Witte - Até parece o carrilhão de Bruges, onde nasci.

Den Os - Ou melhor, o do altivo campanário de Gand, minha nobre cidade.

De Strop - É tal e qual o de Antuérpia, a riquíssima, onde vi a luz do dia...(Choram os três sem nenhuma harmonia)

A Voz (ao longe, rindo às gargalhadas) - Ah! Ah! Ah!

De Witte - Escutem! Estão rindo no horizonte! Que nação maravilhosa esta Itália! Enquanto choramos, os ecos riem para os anjos! (Riem)

De Strop - Esse humor é que é admirável! Contemplem estes altos cimos nevados, donde vamos descobrir as cúpulas e os campanários da Cidade Eterna.

Den Os - Antes de mais nada, sintam estes perfumes estranhos. As flores têm cheiro de incenso, garanto!

De Witte - E vejo num relógio de sol que já é tempo de a gente se por a caminho. Quem vai à frente? Eu! Eu quero ser o primeiro a entrar na cidade mística.

Den Os - Serei eu! Nisto vejo melhor que vocês!

De Strop - Por que não eu, o menos cego dos três?

Den Os - Vamos!

De Witte - Seguremo-nos pelo casaco e batamos os cajados em cadência. (Caminham e cantam "Plenus pulchris caminibus studeat atque cantibus die ista").

A Voz - Die ista...

De Witte - Ué! O eco já não tem a mesma voz. Em que ponto cardeal está agindo agora?

De Strop - Será que estamos voltando, em vez de ir para Roma?

Den Os - Seria terrível! Acho bom interrogar o eco. Se é que ele sabe latim, deve saber geografia. Eu me encarrego disto. (Solenemente) Senhor Eco, digne-se a responder a três cegos que procuram seu caminho. Onde está, eco sutil?

A Voz de Lamprido - Numa árvore da qual descerei para ser-lhes agradável. Sou uma voz que tem patas e chegarei até vocês.

De Witte - Bem que eu pressentia, é um homem! Tanto melhor, ele nos dará esmolas. Vejo-o que vem chegando; um grandalhão, de chapéu redondo.

Den Os - É um pequeno, de chapéu quadrado.

De Strop - Calem-se! É um grande que ficou pequeno, porque é corcunda, nem mais nem menos, e o chapéu dele não passa de um boné de medalhas!

Lamprido (entrando) - Aqui estou, minha gente.

Os Três (tomando ares de mendigo e salmodiando em falsete) - Aqui está o bondoso cristão! Tende piedade de pobres ceguinhos, grandes pecadores! Piedade de calamitosos peregrinos, peregrinando neste vale de lágrimas! Tende piedade de nós!

Lamprido - Piedade tenho de cegos pecadores peregrinando. (ri)

Den Os - Por que ri? (Furioso) Quem é você?

Lamprido - Sou D. Lamprido, rei do país dos fossos, homem sábio que fica pendurado numa árvore em vez de caminhar tolamente para uma Roma onde vocês jamais chegarão. Pedem esmola? Vou dar-lhes maçãs, peras, ameixas, pêssegos, mel, ovos de pata.

De Strop - Nada disso! Queremos dinheiro!

Lamprido - Não o terão, mas posso dar-lhes conselhos e minha ajuda, que é certamente o de que vocês precisam.

De Witte - Não precisamos nem de ajuda nem de conselhos! Por mais cegos que sejamos, os três juntos enxergamos bem claro.

Lamprido - Orgulhosos! Sabem em que lugar estão?

De Witte - Sabemos! Estamos nas altas montanhas, no limiar da campanha romana.

Lamprido - Pois sim! Então escutem!

Den Os - Sim, sim...Somos cegos, não surdos. É o carrilhão de Roma!

Lamprido - Inocentes! Estão no país dos fossos. É preciso acreditarem em mim. Porque, sendo caolho, tenho a vantagem de ver com um olho; mas um só olho basta. Há muitos cegos no país dos fossos, onde sou rei, eu, caolho clarividente.

Os três (sem arrebatamento) - Iii! Ii! É um aleijado! Ha! Ha! E diz que é clarividente! Hi! Hi! E acha que não estamos perto de Roma!

Den Os - Vai-te embora, rei caolho! Não queremos saber nada de ti. És um farsante e teu país dos fossos não existe! Nossos longos cajados têm olhos e nos descrevem os aspectos das campinas. Sai daqui ou nós te batemos!

Os Dois Outros - Vamos dar nele, sim! (Os três dão cajadadas em todas as direções)

De Strop - Quem me bate?

Den Os - Assassino! Você está batendo em mim!

De Witte - Estão nos batendo! Acudam!

Lamprido - Ó trágico engano! Batem uns nos outros e se desancam! Batam à vontade, meus ceguinhos! Mas..o que? Pararam? Sim, sejam pacíficos. Agora escutem! Vou fazer-lhes uma caridade.

Os Três - Tende piedade, piedade dos pobres ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados.

Lamprido - Nem um vintém! Nem um tostão roído! O hálito de vocês bem me diz que adoram a pinga. Ouçam-me! Vou, caridosamente, desviá-los da desgraça iminente. (Silêncio) Os três escutam boquiabertos). O sol vai se por, as brumas sobem, violáceas...Há semanas que os vejo passar e repassar por estes caminhos, que de maneira alguma levam a Roma...Vocês não deixaram Brabante, e os sinos que ouvem são os da torre de São Nicolau, de Bruxelas. Pela minha única vista, avisto daqui os muros da cidade, as torres de Santa Gúdula e o famoso São Miguel Guerreiro, todo dourado, em cima da flexa de sua torre de pedra.

Den Os - É feio caçoar de três miseráveis que não enxergam!

De Witte - Está mentindo para nós. Não é meio-dia. E já faz semanas que deixamos os Países Baixos.

Den Strop - Tome cuidado, Lamprido! Você é um malvado! Denunciaremos você ao Papa! Compadres, não será algum bandido de estradas que vai cortar nossos tornozelos? Senhor!

Lamprido - Pela última vez lhes digo: estão no país dos fossos e a estrada é toda cheia de pântanos e prados inundados. Um passo em falso e desaparecerão! Dentro em pouco descerão as trevas. Vou tomá-los pela mão e conduzí-los ao refúgio da abadia, onde passarão a noite. Eis uma oportuna caridade, e a única que eu quero fazer.

De Witte - Acabemos com isto! A caminho! Deixemos esse velhaco com seus disparates!

De Strop - Embora cegos, temos dignidade! Acha que vamos aceitar auxílio de um caolho? Havemos de entrar em Roma, ainda esta noite!

Lamprido - Pois vão! Entrem em Roma! Mas tenham cuidado de, antes, recomendar suas almas e seus corpos à Providência! Cem vezes cegos aqueles que não querem acreditar no caolho! (Fica aborrecido) Todos os caminhos levam à morte! (Zombando) É ainda uma vaidade entre todas, querer bem ao próximo! Prossigam!

Os Três - Caminhemos.

De Strop - Adeus, caolho! E obrigado pela esmola!

Den Os - Adeus, rei dos fossos, rei das rãs e dos batráquios!

De Witte - Adeus, eco asneirento! Trepa de novo na tua árvore e prega às corujas! Chegou a nossa vez, amigos. Para adiante! E segurem o meu casaco.

Den Os - Eu seguro o casaco, segura o meu. Quem vai à frente?

De Strop - Para o Oriente! Direto!

Lamprido - Vocês estão indo para o Ocidente! Direitinho para a lama fétida, para o nada! Sigam!

Os Três - Honra aos gloriosos peregrinos de Flandres! (Avançam, afastando-se, e o canto ressoa) Haec este dies laubadilis divina luce nobilis...(O canto se interrompe) Socorro! Não me empurrem! Não me puxem! Lamprido! Socorro! É a água! Misericórdia! Estamos afundando...Eu me afogo! Jesus salvai-me! (Gritos ainda ofegos, e as vozes se extibguem).

Lamprido - Nada posso fazer por eles! Os fossos são tão profundos! Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o seu caminho...Descansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo mortal é formado. A noite avança. Vou ganhar de novo a minha árvore onde, por entre os pássaros adormecidos, rezarei por vossas almas cegas, pobres ceguinhos. Amém! (Lamprido sai. O carrilhão soa alegremente nos confins do crepúsculo).

FIM
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Esta peça está publicada na revista Cadernos de Teatro nº 68/1976/edição já esgotada.

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