segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Eugène Ionesco e Bob Wilson

Quando Eugène Ionesco - romeno naturalizado francês, Papa do Teatro do Absurdo, membro da Academia Francesa, e autor de "A cantora careca" e "A lição" que, juntas, formam o espetáculo de carreira mais longa na história do teatro (mais de 20 anos em cartaz no mesmo espaço, o Teatro Huchette, Paris) - encontra Bob Wilson - americano, navaiorguino, e autor do "Teatro de 24 horas" e que São Paulo já teve uma mostra no Festival Internacional de Teatro, em 1976) -, o nonsense, o absurdo, e a loucura saem de cena para dar lugar a um diálogo cândido, lógico e racional. O tema, obviamente, é o Teatro.

* * *

BOB WILSON: Gostamos muito de sua obra na América. Você e Beckett são praticamente os únicos autores clássicos cujas peças foram encenadas na Broadway.

IONESCO: Você sabe, com exceção de "Rinoceronte", minhas peças foram off Broadway, e mesmo off off Broadway, ou então nas universidades, onde os estudantes se interessam ativamente pelos problemas novos da literatura e do teatro.

BW: Há uma falta alarmante de talentos no novo teatro dos Estados Unidos. Temos muito poucas salas subvencionadas. Faltando uma estrutura de festival como a que vocês têm na Europa, que permite divulgar espetáculos que, de outra forma, não viriam à luz.

IONESCO: Mas o Festival de Nancy não produziu grande coisa na França, pois, no final das contas, ficou restrito a Nancy.

BW: Foi em Nancy que se montou pela primeira vez "O olhar do surdo" na versão integral de sete horas. Pretendiam divulgar obras que pareciam anormais no teatro tradicional.

IONESCO: Fiquei deslumbrado com esta peça. Pensava que não fosse verdade, que não se pudesse fazer isso no teatro. É uma obra que ultrapassa tanto o cotidiano como a história individual e a política. Ela me parece como uma visão global da história da humanidade e até da história cósmica, com esta esperança insensata no final, quando o mundo renasce numa nova beleza. Alguém que não você pode remontar esta peça? Você tem cadernos, notas, ou é o único a poder dirigi-la?

BW: Tenho algumas anotações, mas são tão pessoais que outra pessoa teria dificuldade em utilizá-las. E além disso é uma obra construída a partir de pessoas que encontrei nessa época, como esse jovem negro cego. Ela está muito ligada aos atores.

IONESCO: Eu bem senti que era um momento único. É isso que faz sua beleza e infelicidade, em certo sentido.

BW: Você começou como autor de teatro?

IONESCO: Sim. Mas percebo até que ponto meu teatro é pouco teatral comparado com o seu, como é ligado à literatura (rindo): fui prisioneiro do ensino que me deram, o qual dividia a literatura em três gêneros: épico, lírico e dramático. O teatro nada mais é que tudo isso; é um sistema de expressão completamente particular, e foi com você que aprendi isso.

BW (constrangido): No que você trabalha atualmente?

IONESCO: Comecei uma nova peça. E embora tenha visto as suas peças, não me sinto desencorajado a escrevê-la (rindo) e recomecei porque é preciso fazer alguma coisa. Você trabalha nhesse momento em Paris?

BW: Sim, nos estúdios de vídeo de Beaubourg. Estou fascinado com as possibilidades de trocas que a estrutura arquitetônica permite entre as disciplinas. Tal como é concebido, o museu permite uma imensa abertura social. É o centro cultural da cidade, um pouco como as cidades que Paolo Soleri, um arquiteto do Arizona, construiu para daqui a duzentos ou trezentos ano. Ele introduz sempre um elemento cultural no centro e depois cerca este núcleo com as outras atividades da cidade, constituídas pela vida privada, a vida pública, os escritórios etc. Eu realizo nestes estúdios 200 episódios em vídeos de 30 segundos, sem palavras, para as televisões francesa, italiana e alemã. Mas como não há problema de língua, pode-se projetá-los em qualquer lugar.

IONESCO: Você acredita que, em 30 segundos, os telespectadores terão tempo de fixar isso?

BW: Sim, porque a televisão não é um instrumento como os outros. É como uma janela numa casa, completamente inserida na vida cotidiana: pode-se falar ao telefone, comer, fazer amor com o aparelho ligado.

IONESCO: Então é gravado pelo inconsciente e vem à superfície de modo mais sutil e insinuante.

BW: Creio que um episódio poético projetado no meio de uma partida de futebol pode mudar uma impressão mental em alguns instantes; minhas experiências sobre a duração cobrem agora uma gama muito ampla, porque se estende de 30 segundos a 24 horas. E em meio minuto pode-se dar uma enorme quantidade de informações, de impressões, pode-se representar uma vida completa. Mas é difícil incomodar pessoas por 30 segundos.

IONESCO: Eu mesmo fiz cenas muito curtas em minha nova peça, numa passagem cada vez mais fechada, hermética, a linguagem dos sonhos. É impossível num tempo mais longo e seguido não fazer ideologia, apesar de toda a boa vontade que se tem. E o que mais desejo é evitar explicar o mundo.

BW: Iniciada uma peça, como você a desenvolve?

IONESCO: Parece-me escutar uma réplica ou então parto de uma imagem cênica e então a desenvolvo.

BW: Você mesmo dirige suas peças?

IONESCO: Eu brigo com o diretor. Você briga consigo mesmo. (risos).

BW: Você não tem medo de ser mal interpretado?

IONESCO: Pode, é claro, haver conflitos se o diretor não compreende minha linguagem ou se as posições ideológicas entre o realizador e eu próprio são diferentes. Mas quando há compreensão, creio que a compreensão é justa. Aliás, minhas peças são muito simples.

BW: Você emprega, contudo, em sua nova peça, uma linguagem hermética...

IONESCO: Espero que o público queira me acompanhar.

BW: Você está inquieto?

IONESCO: Sim.

BW: Contudo, "A lição" é representada há 21 anos...

IONESCO: Isso pode efetivamente parecer-se com um penhor de fidelidade.

BW: A peça evoluiu, desde a sua criação?

IONESCO: Degradou-se. No início era um texto bufo intepretado de modo muito austero; agora os comediantes são cúmplices dos espectadores, criam efeitos, não têm mais a austeridade do início, interpretam um texto bufo enfatizando a pilhéria. Minha ambição era "dessignificar" a linguagem e finalmente esta peça adquiriu toda a espécie de significações que não me passavam pela cabeça: paródia do teatro, crítica à linguagem pequeno-burguesa...Quanto à "Cantora careca", transformou-se completamente numa peça de bulevar.

BW: A leitura das críticas também pode influenciar o comportamento dos atores. Durante a representação de "O olhar do surdo", os comediantes leram em alguns jornais que representavam lentamente, quando nós havíamos adotado um ritmo lento, pouco tradicional, mas que excluía a idéia de lentidão cinematográfica. Eles não mais reencontraram a seguir seu ritmo inicial.

IONESCO: Nunca devemos ler as críticas.

BW: Você as lê?

IONESCO: Sim.

BW: E se elas são negativas?

IONESCO: Não tem importância. Quando J. J. Gautier disse, no início de minha carreira que, ou eu era um trapaceiro ou um idiota, eu lhe respondi que talvez fosse um idiota, mas não era trapaceiro. (risos).

BW: Durante sua série de conferências nos Estados Unidos, uma pergunta voltava sempre: "Por que você entrou na Academia Francesa?" O que é que, na sua opinião, provoca esse espanto?

IONESCO: As pessoas não sabem o que é a Academia Francesa. Imaginam que é uma instituição muito convencional, ao passo que é um clube de solitários de vanguarda. Temos entre nós Lévi-Strauss, que criou uma nova Etnologia, De Broglie, que é um dos fundadores da Física Moderna e sobretudo o Sr. Wolf, particularmente interesssante porque é um biólogo que fabrica monstros, animais com cinco patas ou com duas cabeças. Mas não os vejo com freqüência, pois só raramente vou às reuniões. E, sobretudo, quando volto lá após cinco ou seis meses, há sempre uma dezena de mortos.

BW: Você tem dificuldade em aprender os nomes dos novos membros?

IONESCO: Sim, tenho...(rindo)

BW: Você foi ao teatro, na América?

IONESCO: Sim, principalmente em Nova Iorque vi uma peça que lembrava terrivelmente sua atmosfera. Esqueci o nome do autor, mas, como dizia Roger Blin: "O olhar do surdo não chegou aos ouvidos de um cego". (risos). Você formou uma escola em Nova Iorque; as pessoas se inspiram em você. Ouvi dizer que havia também tentativas de renovação do teatro em Los Angeles e do cinema fora de Hollywood. Pergunto-me se o futuro cultural da América não estará na Califórnia. O que você acha disso?

BW: Não gosto da Califórnia...(risos). O sol brilha, as pessoas são belas, com boa saúde. Prefiro as cidades sujas, feias, agressivas; trabalho melhor em Nova Iorque. É mais estimulante.

IONESCO: Eu tinha a impressão que Nova Iorque era menos trágica. As pessoas se agitam e, agitando-se, extravasam suas angústias. Na Califórnia, tem-se a impressão que as pessoas dissimulam isso sob uma aparência sorridente, esperando o fim do mundo. Mas é verdade que Nova Iorque é bem você, é a história do mundo tal como ela se faz. Vejo a Califórnia sobretudo como uma região para escritores como Beckett, uma região onde os autores morrem tranqüilamente, assim, como num sonho.

BW: O que lhe parece característico da juventude americana?

IONESCO: Achei os jovens extremamente acolhedores, escutam com muita atenção, tanta atenção que chega a ser constrangedor, porque acho que eles estavam lá para escutar coisas extremamente importantes, e eu não tenho nada de importante para dizer (risos); mas exagero um pouco, não é nada disso o que eu penso.

BW: O que você pensa exatamente?

IONESCO: Que consegui dizer alguma coisa.

BW: Fale-nos de sua próxima peça. São variações sobre temas obsessivos...

IONESCO: As coisas com as quais eu sonho à noite, sempre as mesmas; me encontro na infância, estou em conflito com meus pais...

BW: Descrevendo suas obsessões você pensa conseguir exorcizá-las?

IONESCO: Nunca pude exorcizar nada, nem o medo da morte, nem nenhuma angústia fundamental. Já que sei fazer literatura, faço literatura com isso. Afinal as angústias não são outra coisa além de materiais com os quais se constrói algo, já que uma obra é uma estrutura. Creio que a angústia é o sentimento fundamental que todos nós temos, é a coisa mais profunda que existe em nós - e a mais autêntica também. Temos razão, aliás, em sermos angustiados, encurralados como estamos entre a vida e a morte: realmente há motivo para se sentir angustiado.
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Extraído de INTERVIEW, ano 1., 1978. A presente entrevista consta da revista Cadernos de Teatro nº 79/1978, edição já esgotada.

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