sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Textos para Estudo

Lionel Fischer


Os queridos parceiros deste blog já devem ter notado que foram aqui colocados vários "Textos para Estudo", com a óbvia finalidade de estimular os jovens estudantes de teatro a exercitar voz e memória. Além disso, experimentar as várias possibilidades de expressão que o mesmo texto permite. Então, aí seguem quatro monólogos e um diálogo, que, uma vez estudados e decorados, podem ser apresentados em aula, para amigos, para eventuais desafetos, enfim, para todos aqueles que se dispuserem a ouví-los. Isto feito, cabe àquele (ou àquela, naturalmente) que se dispôs a este breve exercício calçar as sandálias da humildade e ouvir de coração aberto TODAS AS OPINIÕES, para em seguida aproveitar as que julga mais procedentes. No caso do diálogo, a mesma conduta deve ser adotada, sendo muito interessante a possibilidade dos que o realizaram divergirem sadiamente durante o processo de preparação, assim como, mais adiante, face às opiniões recebidas. Nunca é demais lembrar que conviver com divergências é essencial, tanto na vida como no teatro. Desde que tais divergências, naturalmente, sejam fruto de um real desejo de entendimento e troca, jamais manifestações neuróticas de teimosia, cegueira ou doentia necessidade de fazer prevalecer nossa opinião sobre a do outro. Vamos, pois, aos textos.


Nostalgia

Michel Tournier


Eu me lembro. Quando meu pai e meus irmãos tinham ido ao escritório ou à escola, ficávamos sozinhos, minha mãe e eu. Ela se deitava novamente e eu, gritando de alegria, escalava o grande leito conjugal. Jogava-me sobre ela, empurrava a cabeça entre seus seios, pisoteava furiosamente com minhas pernas desajeitadas seu ventre macio de mãe. Ela ria, sufocada de susto, me apertava contra ela para fazer parar meus movimentos desordenados. Era uma luta afetuosa em que eu acabava sucumbindo. Pois tanta mornidão macia vencia minha impetuosidade. Instintivamente eu retomava no mesmo lugar a posição fetal que me continuava familiar - e adormecia.

Mais tarde ela preparava seu banho, e depois de fechar as torneiras ela me sentava na água que subia até meu queixo. Eu permanecia imóvel e bem reto, sabendo por experiência que beberia água se minhas nádegas viessem a derrapar no fundo da banheira. Logo depois, aliás, mamãe vinha por sua vez se sentar na banheira. Não era uma coisa à-toa, pois então a água subia alguns centímetros, e mamãe tinha que me levantar e me pôr no colo antes que eu submergisse.

É principalmente o medo que me inspirava a subida da água em direção a meu nariz que dá toda a vivacidade a essa lembrança e permitiu que ela atravessasse tantos anos. São coisas que não se inventam. Pois, vinte anos mais tarde, evoquei em família essa cena, e tive a surpresa de ver mamãe de repente vermelha e encabulada, negar de todo modo que isso jamais houvesse acontecido. Compreendi tarde demais que aquela lembrança fazia parte de um fundo secreto que eu partilhava com ela, e que eu acabava de cometer um erro imperdoável ao traí-lo.

Nunca deveria ter aludido àquilo, mesmo em conversa a sós com ela. Todos os casais têm entre si esta espécie de reserva tácita e sagrada. Se um dos dois quebra o silêncio, rompe alguma coisa, irremediavelmente.


A casada infiel

Federico Garcia Lorca


Levei-a comigo ao rio pensando que era donzela, porém já tinha marido. Foi na noite de Santiago e quase por compromisso. Os lampiões se apagaram e acenderam-se os grilos. Nas derradeiras esquinas toquei seus peitos dormidos e para mim logo se abriram como ramos de jacintos. A goma de sua anágua soava no meu ouvido, como uma peça de seda. Sem luz de prata nas copas as árvores têm crescido, e um horizonte de cães ladra mui longe do rio.

Passadas as sarçamoras, os juncos e os espinheiros, por debaixo da folhagem fiz um fojo sobre o limo. Minha gravata tirei. Tirou ela seu vestido. Eu, o cinto com o revólver. Ela, seus quatro corpetes. Nem nardos, nem caracóis têm uma cútis tão fina, nem os cristais ao luar resplandecem com tal brilho. Suas coxas me fugiam como peixes surpreendidos, metade cheia de lume, metade cheia de frio.

Percorri naquela noite o mais belo dos caminhos, montado em potra de nácar sem bridas e sem estribos. Dizer não quero, homem sendo, as coisas que ela me disse. A luz do entendimento me faz ser mui comedido. Suja de beijos e areia, trouxe-a comigo do rio. A aragem travava luta com as espadas de lírios. Portei-me como quem sou. Como um cigano legítimo. Uma cesta de costura dei-lhe de raro palhiço e não quis enamorar-me porque tendo ela marido, me disse que era donzela, quando a levara eu ao rio.


A louca

Domingos Oliveira



A vida é uma louca, daquelas que se teme, que corre berrando por corredores e enfia as unhas tirando sangue. Para lidar com tal amada é preciso muita calma e, por que não dizê-lo, masculinidade. É preciso subjugá-la sem medo, sabendo que o morrer é de qualquer hora. Depois, para que se aquiete, propor-lhe aventuras.

Aventuras que estejam à altura de seu total desvario. É preciso prometer o rapto do hospício! Entre beijos estonteantes garantir-lhe que é sã! E, depois respirando fundo, fazer planos para o amanhã. Planos que não necessitam da ajuda de ninguém. Que mesmo desapaixonados, realizaríamos. Não faz mal que sejam planos pequenos. Sequer importa que sejam verdadeiros. A vida é uma louca, ela acreditará, se nosso desejo for inflexível.

E assim, de plano em plano, foderemos até a madrugada, aquela hora terrível, onde o rouxinol se confunde com a cotovia. E então, exaustos, dormiremos abraçados, ou melhor, morreremos sem querer, renascendo de propósito em qualquer outro amanhã. Quero dizer que é preciso fazer constantemente planos magníficos, para isso vive um Homem. E, como método, não temer a obsessão.

Das duas ou três coisas que aprendi na vida, esta talvez seja a melhor: um homem estar constantemente vivendo algo que vale a pena ser vivido, realmente desejado. Um homem deve ter direção. Silvar no ar, como uma flecha! Ter Odisséias, como Ulisses! Não me refiro apenas a trabalhos. Qualquer tarefa que o desejo íntimo eleger. Visitar um amigo distante, passar 5 dias na gandaia ou escrever um livro de filosofia?

Na obsessão da Arte, sempre se está feliz.
Sem a Arte nunca se está feliz.
A Arte salva.
Sem a Arte não há salvação.


Árvore

Millor Fernandes


Já que estamos no verão, esse radioso tempo de verbo, olhemos um pouco mais as árvores, tanto mais velhas quanto mais amigas, vencedoras da idade e das procelas, como escrevia o poeta que intuiu o serviço militar obrigatório (Olavo Bilac). Muita coisa boa vem da árvore; o tronco, por exemplo, dá belos entroncamentos ferroviários, alguns caras troncudos, além de mesas de madeira e, conseqüentemente, vinhos de mesa; a copa fornece principalmente as mordomias; a raiz, quadrada, dá pau no vestibular; e o caule, quando você pergunta que diabo é isso?, obriga o professor indignado a reagir "Caule a boca, seu imbecil!".

Cada árvore tem a sua história, como a macieira, por exemplo, embaixo da qual se deu a primeira transada e embaixo da qual se verifica também a existência da gravidade. Vocês talvez acreditem que a gravidade poderia ser observada embaixo de qualquer outra árvore: mas quando Sir Newton tentou isso embaixo de uma jaqueira, foi parar numa UTI em estado de séria gravidade, e concluiu apenas que a lei (inclusive a da gravidade) é dura, mesmo quando a jaca é mole.

As árvores mais simpáticas que eu conheço são o salgueiro ou chorão, que produz esplêndidos hai-kais (aqueles versinhos tradiconais japoneses: de cada dois, um tem chorão!), a árvore de Natal, que nasce pronta, no dia 24 de dezembro, e dá lampinhas coloridas, o carvalho, muito utilizado em eufemismos pornográficos e a papoula, que dá uma nota preta (cultivada por policiais e traficantes), além de melodiosos boleros: "A papoula, lindíssima papoula..."

Mas a árvore mais importante de todas é mesmo a genealógica. Que, nada tendo de lógica, é a que possui raízes mais profundas. E também a que dá mais galhos.


Papos

Luis Fernando Veríssimo



A - Me disseram...

B - Disseram-me.

A - Hein?

B - O correto é "disseram-me". Não "me disseram".

A - Eu falo como quero. E te digo mais...ou é "digo-te?"

B - O quê?

A - Digo-te que você...

B - O "te" e o "você" não combinam.

A - Lhe digo?

B - Também não, O que você ia me dizer?

A - Que você está sendo grosseiro, pedante e chato. E que eu vou lhe partir a cara. Lhe partir a cara. Partir a sua cara. Como é que se diz?

B - Partir-te a cara.

A - Pois é. Parti-la-ei se você não parar de me corrigir. Ou corrigir-me.

B - É para o seu bem.

A - Dispenso suas correções. Vê se esquece-me. Falo como bem entender. Mais uma correção e eu...

B - O quê?

A - O mato.

B - Que mato?

A - Mato-o. Mato-lhe. Mato você. Matar-lhe-ei-te. Ouviu bem?

B - Eu só estava querendo...

A - Pois esqueça-o e pára-te. Pronome no lugar certo é elitismo!

B - Se você prefere falar errado...

A - Falo como todo mundo fala. O importante é me entenderem. Ou entenderem-me?

B - No caso...não sei.

A - Ah, não sabe? Não o sabes? Sabes-lo não?

B - Esquece.

A - Não. Como "esquece"? Você prefere falar errado? E o certo é "esquece" ou "esqueça"? Iluimine-me. Mo diga. Ensines-lo-me, vamos.

B - Depende.

A - Depende. Perfeito. Não sabes. Ensinar-me-lo-ias se o soubesses, mas não sabes-o.

B - Está bem, está bem. Desculpe. Fale como quiser.

A - Agradeço-lhe a permissão para falar errado que mas dás. Mas não posso mais dizer-lo-te o que dizer-te-ia.

B - Por quê?

A - Porque, com todo esse papo, esqueci-lo.

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Um comentário:

  1. Lionel

    Obrigada! É muito difícil encontrarmos monólogos na hora que, realmente, precisamos!
    Estão todos salvos para salvar-me!

    rs

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