quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um teatro de defasagem:
John Arden

Bernard Dort


O teatro de John Arden se inscreve entre a anedota e a parábola. À primeira vista algumas de suas peças parecem inclinadas para a reprodução da 'fatia de vida' naturalista (por exemplo, "O Asno do Hospício"), outras para a "moralidade" ("O Asilo da Felicidade"). Mas se as olharmos mais de perto, perceberemos que todas contêm elementos dos dois gêneros. Ou, melhor ainda, que John Arden não cessa de fazer seu jogo, no interior de cada uma delas, sobre o desnível entre estas formas dramatúrgicas.

Em primeiro lugar, no que se refere ao lugar e ao tempo. Ora, Arden reproduz minuciosamente os locais reais: é uma "cidade industrial do Norte da Inglaterra; mais exatamente uma dessas cidades compostas de pavilhões de aluguel moderado, construídas e geridas por certas municipalidades" - e descreve em detalhes o interior e o exterior desses pavilhões, que servirão de local para a ação ("Vocês vivem como porcos"). Ou então "é uma cidade industrial de Yorkshire, em algum ponto entre Sheffield e Leeds, nos dias de hoje", com suas ruas, seus canteiros de obras, suas delegacias de polícia, suas clínicas, seus bares e seu cabaré ("O Asno do Hospício").

Mas, nesse caso, Arden toma o cuidado de especificar que "um realismo arquitetural demasiado não é desejável"; suas "descrições devem ser entendidas como de indicações e não como imperativos" ("Vocês vivem como porcos"). Além disso, o cenário não é o reflexo de uma realidade imutável que preexiste à ação. Ele se modifica no decorrer da representação. Por exemplo, em "Vocês vivem como porcos", "paulatinamente o palco será cada vez mais obstruído por um monte de objetos extravagantes que os Sawney trazem em cada ocasião, e no final estará literalmente invadido". Este cenário não é desde o início estático, constrangedor; é dinâmico, maleável. Trata-se de sugerir menos um local particular e mais um certo espaço complexo e variado. A imagem de uma cidade, de um bairro que escapa ao estrito determinismo do ambiente naturalista e assume um valor geral, poético.

Outras vezes Arden situa suas peças em lugares quase imaginários ou, pelo menos, recuados no tempo: é o caso da pequena cidade mineira do "Norte da Inglaterra, há cerca de oitenta anos" de "A dança do sargento Musgrave"; é ainda mais o caso da "Escócia do início do segundo quarto do século XVI" de "O último adeus de Armstrong". Mas, em ambos os casos, a desorientação provocada pela evocação de épocas históricas encerradas, tratadas sem cuidado pela exatidão histórica, não serve senão para nos remeter a acontecimentos de hoje. O que se perfila por trás da "Dança do soldado Musgrave" é, de maneira evidente (Arden faz alusões precisas e explícitas), a guerra que a Inglaterra trava com Chipre; e por trás de "O último adeus de Armstrong", as lutas de Lumumba e de Tschombe no Congo ex-belga.

Arden não cessa de jogar em dois planos: o real em parte ligado ao imaginário, a anedota com a parábola. Obriga-nos a um perpétuo vaivém entre o presente e o passado, o privado e o público, o particular e o geral. Suas peças possuem movimentos. Não se fixam numa forma, num estilo, nem num local definido por referência a uma realidade concreta ou, ao contrário, abandonada à fantasia do realizador. Habituados que estamos, nós franceses, a um estilo teatral "uniforme", corremos o forte risco de ficarmos desconcertados pela variedade das formas da escritura de Arden. Por suas bruscas passagens da prosa ao verso, do diálogo cotidiano à interjeições líricas ou aos romances populares, do debate cerrado entre várias personagens ao monólogo ou ao aparte etc.

É que nenhuma de suas peças nos propõe o desenvolvimento unilinear de uma situação inicial: na verdade, Arden decompõe esta situação em elementos separados, trata cada um deles à parte, mesmo em suas conseqüências extremas. E deixa ao espectador o cuidado de reaproximar, comparar estes fragmentos autônomos. Nisto revela não somente o gosto pelo jogo teatral (que certamente não está ausente: Arden evidencia um prazer manifesto pelos golpes de teatro, pelos saltos inesperados), mas também uma vontade de reencontrar, através da construção dramatúrgica, a própria complexidade da realidade, que, não podendo ser apanhada em bloco, deve ser descoberta progressivamente, sob um ângulo cada vez mais amplo.

Cada peça de Arden nos propõe, portanto, uma dupla aventura: a das personagens, que constitui a ação, e a do espectador, chamado a gradualmente tomar conhecimento desta ação. Nada é proposto de uma vez por todas. Arden recusa todo destino que constrange seus heróis a partir do exterior, assim como recusa todo determinismo psicológico que "agiria" neles a partir do interior.

Suas personagens, apesar de traçadas em cores fortes e desenhadas com brio, nao estão fixadas. Quer estejam lutando contra tal obstáculo ou se encontrem em tais circunstâncias, eis que se transformam: são os Jackson que, diante dos Sawney, se tornam literalmente furiosos ao ponto de provocarem o linchamento dos últimos; ou, ao inverso, são os Sawney que, por mais boêmios que sejam e que queiram ser, preferem o "conforto" de seu pavilhão de aluguel moderado...("Vocês vivem como porcos"). Porque Arden não cessa de repetir: não existe verdade (do "coração" ou da "alma") dos homens, fora da situação que ocupam na sociedade. Ou, ainda mais exatamente, o sentido desta verdade é função desta situação. É neste ponto que se evidencia totalmente esta técnica apreciada por Arden, a defasagem dramatúrgica.

Basta tomar um grupo, geralmente constituído em torno de uma pesonagem central (por exemplo, o grupo de desertores da "Dança do sargento Musgrave") e colocá-lo em cena: aparecerá heróico ou ridículo, segundo o ponto de vista sob o qual for apresentado. Diante deste grupo, vamos colocar outro: o dos mineiros em greve. Então duas possibilidades se oferecem ao autor dramático. Ou estes dois grupos hão de estar em oposição, e então será a partir do conflito entre ambos que emanará o sentido da obra, cada grupo encarnando uma posição ideológica (em "A dança do sargento Musgrave", os desertores tomam partido por uma moral estritamente individualista e os mineiros grevistas por uma ação política coletiva). Ou ambos os grupos hão de ser arrastados por um movimento mais amplo e suas relações mútuas se modificarão: entre eles não mais existirá apenas oposição, mas também incompreensão, contaminação e troca.

Evidentemente é este segundo método que Arden escolhe. E assim conduz o espectador a retificar todo tempo o julgamento sobre a situação de conjunto. Impossível decidir, inteiramente, entre um e outro campo: o espectador ora está com os desertores, ora com os grevistas. Evidentemente os grevistas estão errados quando vêem os desertores como soldados trazidos para acabar com a greve. Mas apesar disso têm razão em considerá-los perigosos, já que, afinal, a aventura individualista dos desertores será a causa do fracasso da greve e do restabelecimento da ordem em favor dos patrões. Acrescentemos que, se tivessem compreendido o que realmente eram estes soldados, os mineiros poderiam ter tirado proveito da situação e, mesmo sem aderir às suas causas, poderiam ter utilizado a revolta dos desertores em favor da própria greve.

Arden não somente substitui o conflito bem nítido do teatro tradicional - no qual indívíduos e grupos encarnam, cada um, uma posição intangível - por uma série de trocas e de tentações, nas quais se dividem as opiniões radicais. Também explora ao máximo tudo que separa as intenções e os desejos dos personagens, dos atos que eles cometem precisamente em nome dessas intenções.

Nisto se resume toda a aventura de Sir David Lindsay em "O último adeus a Armstrong": quer salvar Gilnockie, que pessoalmente lhe é simpático, e termina por perdê-lo de forma mais segura - ele se acomoda como "poeta" e "Tutor do Rei". Por isso as peças de Arden, em sua maioria, não se fecham em si mesmas e abandonam o espectador numa espécie de embaraço (daí, sem dúvida, o fato de nunca alcançarem êxito imediato, quando criadas; somente pouco a pouco, e no decorrer de sucessivas reprises, se impuseram).

Nenhuma conclusão definitiva é proposta ao público. Ele não pode concentrar sua simpatia nesta ou naquela personagem, nem aderir a uma lição ideológica formulada com clareza. O tempo todo é obrigado a modificar sua maneira de ver, de conceber o sentido da ação dramática. No final não é neste herói ou naquele grupo, portadores de uma verdade incontestável, que se deve deter: o público é remetido a uma sociedade e ao funcionamento da mesma. Remetido à sua própria sociedade: pois, através de defasagens no espaço e no tempo, é esta sociedade que é posta em questão.

A extraordinária vitalidade da obra de Arden não vem, portanto, como se poderia crer ao primeiro relance, da atualidade de algumas de suas peças, nem do vigor com o qual são instalados seus heróis (estes "insociáveis", como Rachel, Musgrave ou Armstrong, pelos quais Arden alimenta inegável ternura e que o fascinam). Ela nasce da riqueza e da complexidade da estrutura dramatúrgica. Nasce precisamente destas defasagens entre a época figurada e a época evocada, entre o indivíduo e o grupo, entre as motivações e os atos etc. Através destes recursos o próprio espectador é provocado, abalado, ameaçado e levado a refletir sobre sua própria situação na sociedade - pois ele constitui, em definitivo, o objeto do grande jogo teatral de John Arden.
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Artigo extraído do livro "O teatro e sua realidade" / Editora Perspectiva, 1977.

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