quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO VII


Como havíamos regressado tarde, exaustos e muito tensos, não fui levado à presença de irmã Geovana, como havia sido combinado. Mas nossa entrevista, assim me disse irmã Ocampo, ocorreria ainda naquele dia. Assim, aproveitei toda a manhã para dormir, só sendo despertado ao meio-dia, quando irmã Vôncia irrompeu no meu quarto trazendo o almoço. Apenas para brincar com ela, perguntei-lhe se não achava mais prudente bater à porta antes de entrar, pois eu poderia estar nu - e estava, só que debaixo dos lençois.

- Depois de ontem, nunca mais bato na porta. E se você inventa de sair de novo pelos telhados? Vê lá se eu vou arriscar de novo minha vida...

- Por falar nisso, gostaria de manifestar minha profunda gratidão - atalhei, procurando conquistar sua simpatia. Mas ela, ao responder, me deu a impressão de que não ouvira minhas palavras, ou então não as levara em consideração.

- E essa sua nudez, senhor Aquino ...- e desatou numa risada tão violenta e gutural que julguei ter à minha frente um gigantesco e obsceno ogro. Ato contínuo, virou-se para a porta, que atingiu com apenas duas passadas, embora a mesma estivesse a uns cinco metros de distância. Vendo que ela iria desaparecer, perguntei:

- Irmã: posso saber o seu nome?

- Vôncia - retrucou, sem se virar.

Deveria me dar por satisfeito, não é mesmo? Mas não: ao escutar seu nome achei-o tão esquisito que não resisti e lhe fiz uma pergunta que entrou para o meu vasto acervo na qualidade de uma das mais cretinas que já fizera a alguém:

- Mas...por que Vôncia?

Ela recebeu minha pergunta fisicamente. Primeiro, se imobilizou; em seguida, começou a se virar lentamente, do mesmo modo que um célebre ator japonês o fez para encarar os matadores de seu filho, num filme cujo título me escapa; recordo-me apenas de que a filmagem fora feita de tal forma que nós, espectadores, nos transformávamos nos assassinos e éramos forçados a encarar de frente a ira épica daquele pai dilacerado. Tudo isso me veio à mente enquanto contemplava, profundamente inquieto, o vagaroso rodopio da gigantesca irmã e depois sua lenta aproximação de meu leito - sem querer havia tocado no calcanhar de Aquiles do colosso, que mais tarde vim a saber que abominava seu próprio nome.

Ao atingir a beirada da cama, ela me lançou um olhar em tudo semelhante ao de um algoz que meditasse sobre o local de sua vítima em que desferiria a primeira cacetada. Nesse momento, intuí que estava perdido. Renunciando, então, a toda e qualquer esperança, fiz-lhe um último pedido:

- Irmã, eu quero um padre!

Ao ouvir tal solicitação, irmã Vôncia assumiu o mesmo ar apatetado que exibira no pátio e que tanto me fascinara. Aproveitando esse momento de indecisão, emendei uma segunda frase, já na segunda pessoa, visando impressioná-la.

- Se me impedires a confissão arderei no Inferno, pois tenho a alma entupida de pecados!

Ela então se transformou na materialização perfeita da burrice. Pela primeira vez me deparava com um substantivo. Acreditando então na possibilidade de um milagre, erguí-me no leito e lhe toquei as faces com ambas as mãos, ao mesmo tempo em que lhe disse:

- Não te esqueças, irmã Vôncia, de que se conseguires recalcar esse minuto de cólera estarás economizando cem anos de arrependimento!

Incrível a minha capacidade de despejar um disparate após o outro!? E confesso que realmente não sei até onde chegaria se ela, totalmente confusa, não tivesse se retirado do meu quarto praguejando coisas incompreensíveis e arrastando consigo uma das cadeiras, que em seu hábito se enganchara. Fiquei espantado, inclusive, de ela ter-se lembrado de abrir a porta - no estado em que estava, não seria nem um pouco improvável que a carregasse também, não para me dar uma demonstração suplementar de sua força, mas apenas por ignorá-la.

Quando me senti a salvo, almocei rapidamente, não dando muito importância à comida, pois pressentia que a qualquer momento poderia ser chamado. Assim que terminei, peguei minhas roupas e só então reparei no seu estado lastimável, parcialmente rasgadas e manchadas de sangue, resquícios de meu combate com os urubus. Ao olhar-me no espelho do banheiro, constatei também que meu corpo apresentava inúmeros ferimentos, que embora de pouca gravidade, requeriam alguns cuidados, já que poderiam infeccionar. Mas como nada havia ali que pudesse utilizar, vestí-me e passei a aguardar. Passados alguns minutos, irmã Silvia apareceu e pediu-me que a acompanhasse.

Depois de ziguezaguearmos por infindáveis corredores, chegamos à mesma sala onde quase Semibreve me castrara. Ela já estava apinhada. De pé, as irmãs conversavam em voz baixa e pareciam tensas. O altar onde fora colocado não estava mais lá e o lugar, na verdade, era uma espécie de anfiteatro, com escadarias até a metade das paredes. Sem pronunciar uma única palavra, embora lhe perguntasse o que estava se passando, irmã Silvia me conduziu ao lugar que me fora destinado e se afastou, numa atitude tipicamente feminina. Em seguida surgiu irmã Geovana, caminhando majestosa até colocar-se ao meu lado.

- Irmãs, podem se sentar. - falou, aparentando serenidade.

Todas se afastaram até as escadarias e nelas se sentaram. Deveriam ser umas trezentas e ocuparam quase todos os lugares disponíveis, com exceção de um espaço situado à minha direita, junto à entrada. Irmã Geovana o notou de imediato, assim como a presença ali de uma única irmã que não havia procedido como as outras, e que lhe disse:

- Irmã Anilec (era esse o verdadeiro nome da Semibreve) manda lhe comunicar que não comparecerá à reunião. Solicita que se lhe enviado um relatório - e ostensivamente deu as costas à assembléia, desaparecendo.

Então era isso! Havia no convento uma pequena mas atuante facção rival, que obedecia ao pavoroso aleijão!? E fora esse grupo que me sequestrara na porta do convento e me submetera
àquela humilhação. Tudo agora se explicava. Tão logo se informara do que estava acontecendo, irmã Geovana mandou que as irmãs de sua maior confiança me libertassem e conduzissem à sua presença. Em represália, Semibreve e suas comparsas se negavam a participar da reunião.

Mas irmã Geovana não me pareceu preocupar-se com este incidente, como se já o tivesse previsto. Ao cabo de alguns momentos de reflexão, durante os quais algumas irmãs brindaram as ausentes com adjetivos um tanto deslocados naquele contexto, irmã Geovana foi até o centro da sala e com um gesto pediu silêncio.

- Irmãs...- iniciou, como se medindo as palavras. - As notícias trazidas pelo senhor Aquino se confirmaram. Todos os habitantes da cidade estão mortos.

Ao ouvirem a terrível novidade, algumas irmãs ergueram-se de um salto, mas irmã Geovana prosseguiu:

- Não nos cabe neste momento refletir sobre as possíveis causas da tragédia, mas sim tomar as providências que ela nos impõe. Peço a presença de trinta voluntárias para enterrar o pouco que ainda resta dos mortos, antes que seja tarde demais.

Ao impacto da brutal revelação, a maioria das irmãs desatou em prantos, mas ainda assim logo surgiram as trinta voluntárias, que sem perda de tempo abandonaram a sala capitaneadas por irmã Ocampo - esta, mais uma vez, dava mostras de ser o braço direito da jovem superiora. Ato contínuo, irmã Geovana se ajoelhou e começou a rezar.

Imediatamente, todas a imitaram, mesmo aquelas que pareciam ter perdido o controle. E então eu pude presenciar o mais fervoroso Pai Nosso de toda a minha vida. Foi realmente incrível. Cada palavra tinha um peso e todas as frases um sentido profundo. A oração, proferida dessa maneira, em nada se parecia com as rezas de colégio ou de cerimônias oficiais, onde normalmente, por absoluta falta de convicção, produz-se uma cantilena amorfa e descaracterizada. Ali, ao contrário, por acreditarem firmemente que Deus ouviria seus apelos, todas a Ele se entregavam sem reservas. E sua crença era tão mais apaixonada quanto nela não se percebia nenhum sintoma de histeria. Depois desse episódio, passei a achar que o teatro e a fé têm muito em comum, na medida em que dependem essencialmente de um encontro. No teatro, com o ator. Na religião, com Deus.

Ao final da oração, irmã Geovana declarou que as atividades do dia deveriam ser cumpridas normalmente, salvo por aquelas que não se julgassem em condições. As irmãs, então, foram se retirando lentamente, até que só restamos irmã Geovana e eu. Como tinha muitas coisas a lhe dizer, caminhei até onde ela estava.

- Irmã...sei que a hora não é oportuna, mas eu preciso conversar com a senhora.

Ela ergueu os olhos para mim, dando-me a impressão de fazer um esforço muito grande para me reconhecer. Claro está que essa impressão só surgiu em função de meu desmesurado complexo de rejeição, pois irmã Geovana, como não poderia deixar de ser, ainda se encontrava visivelmente abalada com os acontecimentos. Em todo o caso, tive o bom senso de não lhe recordar quem eu era.

- Como a irmã sabe, eu me comprometi a escrever a história de Ambrosina.

- Em sonhos, se bem me recordo.

- Sim, mas de qualquer forma eu gostaria de cumprir minha promessa. E para tanto eu preciso não só de sua autorização para permanecer aqui enquanto seleciono o material que levarei comigo, quanto de sua ajuda para retirá-lo da casa dela. Espero, sinceramente, contar com sua boa vontade. Esteja certa de que é muito importante para mim.

Uma hora mais tarde, estava a caminho da cidade, aboletado numa carroça puxada por dois magníficos cavalos - escolhidos, naturalmete, entre os mais calmos. A tal carroça, aliás, fora idéia da própria irmã Geovana, e revelou-se de extrema utilidade, pois me possibilitou transportar não apenas o gigantesco acervo de Ambrosina, mas também algumas outras coisas que, não sei se agindo bem, comigo resolvi trazer.

Essa nova expedição, creio eu, merece um capítulo à parte.

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