quinta-feira, 20 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Tempo de solidão"

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Bela e onírica visão do amor


Lionel Fischer


Criado em 2006 pelo Centro Cultural Banco do Brasil, o projeto Seleção Brasil em Cena tem como principal objetivo a revelação de novos autores. Estes enviam seus textos e os 12 finalistas têm suas obras exibidas ao público na forma de leituras dramatizadas. Então, um júri popular seleciona as três melhores - que recebem prêmios em dinheiro no valor de 5 mil, 3 mil e 1 mil reais, respectivamente - e a vencedora ganha o prêmio suplementar de ver sua obra encenada no próprio CCBB.

Em 2009, "Tempo de solidão", de Márcia Zanelatto, foi a escolhida entre os 162 textos escritos e agora chega à cena (Teatro III do CCBB) com direção de Ivan Sugahara e elenco formado por jovens atores que participaram da leitura e foram para ela indicados por algumas das melhores escolas de teatro do Rio de Janeiro - Bruno Dubeux, Carol Garcia, Fábio Cardoso, Marília Misailidis, Samuel Paes de Luna e Victor Mattos.

"Tempo de solidão" é ambientada numa estação ferroviária. E esta, como sabemos, é um local de passagem, de embarque e desembarque. Isto, evidentemente, no plano real. Mas aqui, e ainda que mantendo, em certa medida, suas características essenciais, a estação criada pela autora deve ser encarada mais como uma metáfora, posto que os possíveis embarques ou desembarques não visam uma geografia específica, mas uma outra bem diversa: um possível (ou não) reencontro com um grande amor que se foi.

E aqui, em função do que assisti ontem, cabe uma breve reflexão. Em 99% dos casos, quando um casal se separa é porque algo de grave e irremediável ocorreu, ou então simplesmente porque o amor se esgotou. No entanto, Márcia Zanelatto trabalha este tema de forma absolutamente diversa: existiria, como de fato existe, a possibilidade de um casal se separar não porque deixou de se amar, mas porque uma das partes estaria precisando de um tempo para se reencontar, um tempo de solidão interna que possibilitaria uma avaliação de suas prioridades, estando aí incluída a opção amorosa. E sem esse distanciamento da pessoa amada, isto seria literalmente impossível.

Entretanto, a autora deixa implícito, de certa forma, que todo adeus pode conter ao menos a promessa de um encontro futuro, desde que a dor do afastamento não se converta em melancolia, pois esta paralisa e impossibilita todas as reflexões passíveis de gerar as almejadas transformações.

No presente caso, estamos diante de um casal e seu duplo (concepção criada pelo diretor) que se depara com chegadas e partidas, assim como interage com personagens lúdicos, como o mensageiro e o bilheteiro da estação. Mas o que está realmente em causa só diz respeito aos dois. E mesmo quando explicitam em palavras as causas da separação e a eventual possibilidade de um reencontro, existem passagens altamente expressivas, criativas e oníricas, como aquela em que a mulher conversa com o homem, convertido em boneco que emerge de uma caixa trazida pelo mensageiro: ele se confessa pequeno, impotente para se doar plenamente ao amor, assim justificando sua partida. Mas depois de ouvi-lo, a mulher não joga fora a caixa, pois sabe que nela existe a possibilidade do "pequeno" voltar a ser "grande", o que viabilizaria o retorno daquele que se foi.

Bem escrita, contendo ótimos personagens e pertinentes reflexões sobre múltiplos temas, sendo os principais o amor e o tempo, a peça de Márcia Zanellato chega à cena com irrepreensível versão de Ivan Sugahara, que teve a sagacidade de perceber que estava diante de uma obra que, para atingir efetivamente o coração do espectador, demandaria uma encenação que desse grande ênfase ao onírico, renunciando (ao menos parcialmente) a uma compreensão centrada na lógica, em uma análise meramente cerebral dos fatos materializados na cena. E foi graças a esta sábia opção que eu, particularmente, tive o privilégio de me "anular" como crítico e embarcar nesta inesquecível jornada, impregnada de sonho e fantasia.

Com relação ao elenco, todos exibem segurança e grande capacidade de entrega, afora, em muitos momentos, conseguirem preencher de sentimentos e forte carga dramática os propositais e longos silêncios criados pela direção. Assim sendo, nada me resta a não ser desejar que os sempre caprichosos deuses do teatro abençoem a trajetória artística deste jovem grupo que agora dá início à sua jornada artística.

No tocante à equipe técnica, Ruy Cortez assina uma cenografia atemporal e altamente poética, em total sintonia com as propostas do texto e da direção, sendo igualmente irretocáveis os figurinos que criou. Renato Machado ilumina a cena com grande sensibilidade, conseguindo enfatizar os múltiplos climas emocionais em jogo, sendo também irrepreensível a expressiva trilha sonora do diretor.

TEMPO DE SOLIDÃO - Texto de Márcia Zanellato. Direção de Ivan Sugahara. Com Bruno Dubeux, Carol Garcia, Fábio Cardoso, Marília Misailidis, Samuel Paes de Luna e Victor Mattos. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30

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