segunda-feira, 24 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA



"Sade em Sodoma"



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Sarcasmo, virulência e nervosismo




Lionel Fischer




Aristocrata e escritor libertino, Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), mais conhecido como Marquês de Sade, conseguiu o prodígio de desagradar a todos que detiveram o poder em sua época. A monarquia (Antigo Regime) o perseguiu, os revolucionários vitoriosos de 1789 também e mais ainda Napoleão Bonaparte, que o mandou encarcerar várias vezes, sendo uma delas por ter se ofendido com uma sátira que Sade lhe escrevera. Esteve confinado nas prisões de Vincennes e da Bastilha, tendo falecido no hospício de Charenton, onde encenou várias de suas obras tendo os loucos como atores.


Mais conhecido do grande público por sua obra de maior repercussão, "120 dias de Sodoma", Donatien Alphonse escreveu muitas outras, tais como: "Justine", "Juliette de Sade", "Zaloa e suas amantes", "Os estratagemas do amor", "Os crimes do amor", "A filosofia na alcova", "Contos libertinos", "Diálogo entre um padre e um moribundo" e "A crueldade fraternal". Por muitos considerado precursor do surrealismo, até mesmo a psicanálise extraiu de Sade o termo "sadismo", definido como perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral dos parceiros ou parceiras.


Mas por que será que um homem, aparentemente só interessado em desvios e perversões, continua sendo tão lido, estudado e muitas de suas obras adaptadas para o teatro e o cinema? Trata-se, sem dúvida, de uma questão de difícil resposta. Em todo caso, estamos aqui diante de "Sade em Sodoma" (Caixa Cultural), adaptação teatral do livro homônimo de Flávio Braga, que fez uma releitura do romance "120 dias de Sodoma". Contando com direção e dramaturgia de Ivan Sugahara, o texto chega à cena com intepretação a cargo de Guta Stresser (Madame Duclos), Tárik Puggina (soldado Mathieu) e dois personagens de apoio, vividos por Edson Santos e Mayara Travassos.

Convertendo a platéia no próprio Marquês de Sade, tudo que aconteceu nos tais "120 dias" é para ele narrado pelos protagonistas, o que não chegamos a entender por quê, já que ele fora o autor da história e portanto a conhecia em seus mínimos detalhes. Seja como for, os espectadores são informados das inimagináveis perversões, crueldades, escatologias, estupros, torturas, assassinatos etc. de que são vítimas jovens sequestrados (de ambos os sexos), todos pertencentes à mais alta aristocracia parisiense. Além deles, uma imensa horda de prostitutas, cafetões e outros representantes da escória são também convocados por quatro amigos poderosos, que objetivam promover, ao longo de quatro meses, algo que faria de um Nero uma criança inocente.

E aqui voltamos à questão formulada acima: qual seria o interesse do leitor nesta bizarra e dantesca sucessão de horrores? E também, como já foi dito, por que tantos estudiosos se dedicaram (e ainda se dedicam) à análise desta obra? Em minha opinião - e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos - Sade elegeu a perversão como uma espécie de metáfora das perversões de sua época, por sinal as mesmas de todas as épocas, já que o mundo sempre foi e, ao que parece, continuará sendo dominado pelos que detêm o poder.

Neste sentido, as atrocidades perpetradas no contexto da obra não me parecem muito diferentes, em sua essência, das que são cometidas atualmente com todas as minorias - num passado nem tão remoto, Hitler, por exemplo, decidiu exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E se ao invés de orgias optou por câmaras de gás, isto me parece irrelevante, posto que sua finalidade era o exercício de um poder que julgava ilimitado e legítimo. Mas Hitler, naturalmente, era um psicótico, enquanto Sade era um artista. E aqui reside toda a diferença entre ambos.

Com relação ao texto, e apesar da ressalva feita acima no que tange à sua estrutura narrativa, ele é de excelente qualidade, tendo o autor criado dois ótimos personagens, interpretados com apropriadas doses de sarcasmo e virulência por Guta Stresser e Tárik Puggina, sendo corretas as participações de Edson Santos e Mayara Travassos.

Quanto ao espetáculo, Ivan Sugahara prioriza a narrativa, eventualmente enriquecendo-a com passagens dançadas e outras em que os protagonistas comem, bebem e simulam estar a ponto de transar diante da platéia - esta, por sinal, alterna risos com estupefação, afora um nervosismo mais do que justificado.

Na equipe técnica, a correção é a tônica dos trabalhos de todos os profissionais envolvidos neste curioso projeto - Olívia Teixeira (coreografia), Rose Gonçalves (preparação vocal), Nello Marrese (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação), Patrícia Muniz (figurinos) e Nervoso (?) direção musical.

SADE EM SODOMA - Texto de Flávio Braga. Direção e dramaturgia de Ivan Sugahara. Com Guta Stresser, Tárik Puggina, Edson Santos e Mayara Travassos. Caixa Cultural. Quinta, sexta e domingo, 20h. Sábado, 18h e 20h.

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