sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Aqueles dois"


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Belíssimo encontro no CCBB


Lionel Fischer


Extraído do volume Morangos mofados, publicado em 1982, o conto Aqueles dois talvez seja a obra ficcional nacional que melhor retrate o envolvimento afetivo de dois homens. Isto se dá por uma série de motivos, que tentarei explicitar mais adiante. Importa agora registrar que uma excelente adaptação do conto de Caio Fernando Abreu está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, em temporada que se encerra no próximo dia 28.

Com concepção assinada pela Cia. Luna Lunera, de Minas Gerais, o espetáculo chega à cena com criação, direção e dramaturgia de Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati, sendo que os quatro primeiros defendem os dois protagonistas do conto, Raul e Saul, assim como atuam como narradores.

Como foi dito no parágrafo inicial, esta talvez seja a obra nacional que melhor retrate o envolvimento afetivo entre dois homens. Em primeiro lugar, porque nos expõe gradativamente a mútua atração que os personagens vão sentindo e isto acontece não em função do exterior de cada um, mas de afinidades internas e artísticas, impossíveis de serem compreendidas e muito menos aceitas pelos "normais" companheiros de repartição dos dois protagonistas.

Outro ponto a ser destacado é a ausência total de qualquer vulgaridade, pois o que está em causa é muito mais um encontro de almas do que de corpos ávidos por um fugaz prazer. E também cabe mencionar a sutil e ferina crítica que o autor faz à hipocrisia, aos preconceitos e à mediocridade, sempre valendo-se de uma linguagem ao mesmo tempo poética e não isenta de humor.

Sem sombra de dúvida, Caio Fernando Abreu conseguiu criar uma obra plena de humanidade e que permanece atualíssima, pois embora os gays venham conquistando cada vez mais o espaço que durante tanto tempo lhes foi negado, seria por demais ingênuo acreditar que já possam assumir publicamente seus afetos sem gerar incômodo nos supostos detentores dos valores morais e éticos de uma sociedade como a nossa, que, como todos sabemos, carece totalmente de moral e ética, sendo pródiga em intolerância e hipocrisia.

Quanto ao espetáculo, este cativa o espectador desde o primeiro instante, graças ao talento dos intérpretes, sua notável capacidade de entrega e a sinceridade com que se relacionam com a platéia, afora as criativas e surpreendentes soluções cênicas adotadas, cuja aparente simplicidade é completamente enganosa, sendo fruto de elaborado processo cujo resultado é uma linguagem moderna sem jamais ser modernosa. Como sempre sustentou Peter Brook, o teatro é a arte do encontro. E aqui este se dá de forma superlativa e inesquecível.

Na ficha técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a cenografia e figurinos assinados pelo núcleo de criadores do espetáculo, assim como a trilha sonora, que imagino ter sido criada pelo grupo. E mais ainda a expressiva iluminação de Felipe Cosse e Juliano Coelho, que enfatiza com grande sensibilidade os múltiplos climas emocionais em jogo.

AQUELES DOIS - Texto de Caio Fernando Abreu. Com a Cia. Luna Lunera. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.

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