quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Joracy Camargo
e
sua obra-prima


R. Magalhães Júnior


O que dá a medida do êxito de uma peça teatral é a sua capacidade de resistência ao tempo. Os falsos sucessos são passageiros. Existem por um momento e, às vezes, dão a impressão de coisa definitiva. Contudo, não sobrevivem. Suas lembranças se adelgaçam na distância, seus ecos se perdem no tempo. Não foi o que aconteceu com Deus lhe pague, a famosa comédia de Joracy Camargo. Lembro-me ainda de seu lançamento, pois em tal época eu já estava dominado pela paixão do teatro, escrevendo, ou melhor, tentando escrever as minhas primeiras peças e já fazendo críticas.

É impossível descrever o entusiasmo com que todos acolheram a criação de Procópio Ferreira. Os retratos do grande ator apareceram nas capas das revistas de maior circulação. E as representações pareciam não ter mais fim. Um banquete no Palace Hotel, com discursos de muita gente - hoje só me lembro de que Gilberto Amado foi um dos que falaram - celebrou a vitória do então jovem autor. Semanas depois, brigavam empresários argentinos, para apresentar em seu país a peça de Joracy Camargo.

Dios se lo pague acabou indo à cena, simultaneamente, em dois teatros em Buenos Aires. Em viagem pelo Prata, em fins de 1934 e início de 1935, vi uma dessas versões, interpretada pelo ator Alfredo Camiña. Este não era nenhum Procópio. Mas que fabulosa realização cenográfica e que apuro geral na encenação! Quando voltei ao Brasil, nem o autor, nem o grande ator brasileiro estavam mais no Rio. Tinham ido levar Deus lhe pague a Portugal, onde, apesar das dificuldades com a censura, o êxito não foi menor.

Alguns anos mais tarde essa peça - que nunca mais deixou de ser representadíssima no Brasil e na Argentina, ao mesmo tempo que se multiplicavam suas traduções em idiomas estrangeiros - começava a ser objeto de interesse de empresas cinematográficas. Joracy Camargo cedeu seus direitos a uma companhia argentina, que a filmou com Arturo de Cordova e Zully Moreno. O filme levou Deus lhe pague não só a todas as nações de língua espanhola, mas a quase todo o mundo.

Em 1952, quando fui um dos delegados do Brasil ao Congresso Internacional de Direito Autoral, em Amsterdã, de passagem por Paris caminhava eu com Joracy Camargo, meu companheiro de delegação, pela "Avenue des Chapms-Elysées", quando no lado oposto vi um imenso cartaz cobrindo toda a fachada de um cinema. Chamei a atenção de Joracy Camargo:

- Que coisa curiosa! Aquela figura tem certa semelhança com um dos teus mendigos...

Marchamos para o cinema e já na metade do caminho pudemos ler o título do filme em questão: Le mendiant de minuit (O mendigo da meia-noite). Nenhuma referência, em letras grandes, a não ser esta: filme falado em francês.

- É um filme francês - disse Joracy, muito preocupado em ganhar tempo. - Vamos embora...

- Então continuemos por este lado...

Agora, diante do cinema, vendo as fotografias em exposição, vimos que se tratava justamente de Dios se lo pague, dublado em francês graças à reperscussão alcançada no Festival Cinematográfico de Veneza, onde a obra de Joracy Camargo conquistara o prêmio destinado ao melhor argumento. Todos esses desdobramentos justificam as sucessivas reedições que a famosa peça vem alcançando. Deus lhe pague concorreu, em grande parte, para que a Academia Brasileira de Letras conferisse a Joracy Camargo, sua maior láurea, o Prêmio Machado de Assis. Nos Estados Unidos, o texto tem sido utilizado no ensino de nosso idioma. O diálogo vivo, natural, brilhante, enxuto e preciso de Joracy Camargo é um exemplo de como se pode exprimir idéias em nossa língua com simplicidade e espontaneidade.

No panorama da dramaturgia brasileira, Deus lhe pague representa um verdadeiro marco: o do início do nosso teatro moderno. Três gerações anteriores tinham lançado as bases dessa dramaturgia: a de José de Alencar, Domingos de Magalhães, Gonçalves Dias, Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e Joaquim Manuel de Macedo iniciou a arrancada; a de França Junior, Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Moreira Sampaio, José Piza e Coelho Neto continuou-a; a de Paulo Barreto, Roberto Gomes, Viriato Corrêa, Oduvaldo Vianna, Armando Gonzaga, Paulo Gonçalves e Abadie Faria Rosa levou-a um pouco adiante.

Como uma ponte entre essa geração e a atual, Joracy Camargo foi o primeiro a ter a percepção de que era necessário abrir caminhos novos e trazer para a cena o debate de problemas antes proibidos. Hoje, Deus lhe pague, uma peça mansa e pacífica, tem trânsito livre em toda a parte. Mas chegou a estar proibida por algum tempo, como subversiva, só com tremendo esforço vindo a ser posteriormente liberada.

Sobre o que representou esta peça, nada melhor do que transcrever aqui algumas palavras da introdução que, na antologia Teatro Brasileiro Contemporâneo, escreveram os professores Wilson Martins, grande crítico brasileiro e Seymour Menton, o primeiro da New York University e o segundo da University os California, Irviney:

"Dez anos antes, quando estreou a peça de Joracy Camargo a situação era profundamente diversa. (...). Deus lhe pague, de seu lado, repercutiu como uma bomba e chegou a inquietar a polícia: era uma peça que 'pensava' e que 'fazia pensar'; no fundo, ela aceitava a organização social tal como existia, mas, pela primeira vez, permitia-se criticá-la".

Para os mesmos autores, Deus lhe pague "foi uma revolução no pensamento, sem chegar a ser uma revolução do teatro" em matéria de renovação dos processos de encenação. Vão mais adiante, traçando um paralelo entre Deus lhe pague e Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, que é outro marco da renovação de nosso teatro: "É possível pensar que, quanto ao conteúdo, Deus lhe pague era, no momento da sua criação, muito mais revolucionária do que Vestido de noiva em 1943", etc. O destino dessa peça, que Wilson Martins e Seymour Menton dizem ser de "crítica social e deliberadamente revolucionária" (qualquer que seja, em outro plano, a validade e a profundidade do seu pensamento) se completa agora, com sua apresentação, em edição popular, pelas EDIÇÕES DE OURO. Era sem dúvida um título que estava faltando entre seus clássicos.

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