terça-feira, 6 de outubro de 2009

O enredo de O cerejal

Francis Fergusson


O cerejal (O jardim das cerejeiras) costuma ser acusado de não ter enredo algum, e é verdade que a história dá poucas indicações do significado ou conteúdo da peça; nada acontece, como costumam dizer os críticos da Broadway. Também não apresenta nenhuma tese, embora muitas tentativas tenham sido feitas para atribuir-lhe uma, fosse encaixando-a na linha marxista, ou numa defesa nostálgica do velho regime.

A peça não tem lá muito enredo em qualquer desses significados comuns da palavra, porque não é dirigida à mente racionalizadora, mas à sensibilidade poética e histriônica. É a imitação de uma ação no sentido mais restrito, e é estruturada de acordo com o primeiro significado dessa palavra que já caracterizei em outros contextos: os incidentes são escolhidos e arranjados para definir a ação dentro de uma determinada atmosfera; uma ação completa, com início, meio e fim no tempo. Mas que independe da ordem mecânica da tese ou intriga, o que tipifica a perfeição da arte realista de Tchecov. E seus incidentes, aparentemente naturais, são na realidade compostos com a mais elaborada e consciente perícia para revelar uma vida subjacente, e a forma objetiva e fluente da peça como um todo.

O cerejal é um drama de "motivação ética", um teatro-poesia sobre o sofrimento das transformações; e este tipo de ação e de consciência está muito mais perto das bases céticas do realismo moderno e das bases histriônicas de qualquer realismo. A intuição direta antes da doutrinação é sempre verdadeira, diz Aristóteles; e o feito extraordinário de Tchecov é não doutrinar coisa alguma. O que é conseguido através de seu enredo; selecionando apenas aqueles incidentes, aqueles momentos na vida dos personagens, entre os seus esforços racinalizantes, quando eles percebem a situação e o destino mais diretamente. É assim que ele faz aflorar a ação da peça - a tentativa falhada de permanecer no Cerejal - através de vários "refletores" diferentes e sem propor nenhuma tese a respeito.

O fino fio narrativo que amarra esses incidentes e personagens num todo para a mente inqusidora pode ser rapidamente resumido. A família, dona da velha propriedade a que dá nome o famoso pomar - Lyubov, seu irmão Gaev, e suas filhas Varya e Anya - está quase completamente falida e tem o problema de evitar que os credores vendam o Cerejal para recolher suas dívidas. Lopahin, cuja família fôra serva da propriedade, e que começa a tornar-se um rico homem de negócios, oferece-lhe o plano muito razoável: botem o Cerejal abaixo e dividam a propriedade em pequenos lotes, transformando-a em subúrbio residencial da pequena cidade industrial que cresce ali perto. Assim o valor da terra em dinheiro poderia não apenas ser preservado, mas aumentado. Isso, entretanto, não salvaria aquilo que Lyubov e seu irmão acham valioso na velha pripriedade: eles não podem consentir na destruição do velho pomar. Como não conseguem dinheiro, ganho ou emprestado para pagar as dívidas, tudo é afinal vendido em leilão para o próprio Lopahin, ativo e animado. Seus trabalhadores começam a cortar as árvores antes mesmo da família deixar a casa.

A peça pode ser resumidamente descrita como um pathos de grupo, de caráter realista; todos os personagens sofrem com a entrega da propriedade, cada um a seu modo, o conjunto pondo em evidência essa transformação num nível mais profundo e de significado mais amplo do que o de qualquer experiência individual. A ação que todos partilham por analogia, e que informa o sofrimento da transformação destinada ao Cerejal, é "salvar o Cerejal": isto é, cada personagem vê nele um valor - econômico, sentimental, social, cultural - e deseja conservá-lo. Por meio do enredo, Tchecov focaliza a ação geral: seu palco cheio de gente - os personagens que mencionei e meia dúzia mais de agregados - é como uma discussão implícita da fatalidade que concerne a todos; mas Tchecov não compartilha as idéias deles, e o intercâmbio que mostra entre suas dramatis personae não é tanto o do jogo de idéias quanto o da alternância das intuições dos personagens sobre a situação de cada um, conforme as tensões se modificam e a hora da decisão chega e passa.

Embora a ação escolhida por Tchecov para mostrar no palco seja "patética", isto é, sofrimento e intuição, ela é completa: O cerejal é armado diante de nossos olhos, e depois desarmado. O primeiro ato é um prólogo: é o momento em que Lyubov volta de Paris para tentar retomar o antigo modo de vida. Através de seus olhos e dos de sua filha Anya, bem como das perspectivas complementares de Lopahin e Trofimov, vemos a propriedade como se estivéssemos nela, sentindo suas várias possíveis significações.

O segundo ato corresponde ao agon: é quando percebemos os valores em conflito entre todos os personagens, e os esforços que fazem (fora do palco) para salvar, cada um, o seu Cerejal. O terceiro ato compreende o pathos e a peripécia da forma trágica tradicional. Trata-se de uma festa bastante histérica oferecida por Lyubov enquanto sua propriedade está sendo vendida em leilão na cidade vizinha; e que termina com a comunicação de Lopahin, orgulhoso, mas amargurado pelo sentimento de culpa, de ter sido ele o comprador.

O último ato é a epifania: vemos a ação, agora completa, sob uma luz nova e irônica. É o momento da partida da família: as janelas foram pregadas, a mobília está empilhada pelos cantos, e as malas prontas. Todos os personagens sentem, e o público vê, de mil maneiras, que a vontade de salvar o Cerejal redundou, de fato, em sua perda; o reencontro de seus moradores, em desencontro; a volta ao lar, em partida. O que isto "significa", não nos é dito. Mas a ação está completa, e o poema do sofrimento da transformação conclui com uma nova e final intuição e uma tocante nota sentimental.
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O presente artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro Evolução e sentido do Teatro (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1964, tradução de Heloisa de Hollanda G. Ferreira)

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