sexta-feira, 3 de julho de 2009

O ato de incorporar

Peter Brook


O ato de representar se inicia com um pequeno movimento interior, tão suave que chega a ser quase imperceptível. Notamos isso quando comparamos uma representação cinematográfica com uma representação teatral: um bom ator teatral pode representar no cinema, mas não necessriamente o inverso. O que acontece? Proponho à imaginação de um ator algo como "ele está abandonando você". Neste momento, no fundo do seu ser, ocorre um movimento sutil. Não só nos atores - o movimento ocorre em todo mundo, mas naqueles que não são atores, ela é muito tênue para se manifestar de alguma forma. O ator é um instrumento mais sensível e nele o tremor pode ser detectado. No cinema, o grande ampliador, as lentes descrevem este movimento para o filme, que, por sua vez, registra-o; portanto, para o cinema o primeiro movimento é tudo.

Impulso

Nos primeiros ensaios de uma peça, o impulso não pode ir além de um movimento - mesmo que o ator deseje exagerá-lo, os tipos mais diferentes da tensão físico-psicológica podem intervir e então a corrente entra em curto-circuito. Para que esse movimento rápido passe por todo o organismo, precisa haver um total relaxamento, seja ele natural ou obtido através do trabalho. Isso, em suma, é o que constui os ensaios. Dessa forma, o ato de representar é mediúnico - a idéia repentinamente toma conta de todo um processo de imaginação. Na terminologia de Grotowski, os atores "incorporam" , incorporam eles mesmos.

Obstáculos

Nos atores muito jovens, os obstáculos são por vezes muito elásticos, e as incorporações podem ocorrer com uma surpreendente facilidade, mesmo as mais sutis e complexas, o que leva ao desespero aqueles que desenvolveram suas habilidades durante anos. Mais tarde, com sucesso e experiência, os mesmos jovens atores criam barreiras para si mesmos. As crianças muitas vezes conseguem representar com uma técnica natural extraordinária. As pessoas reais ficam maravilhosas na tela. Entretanto, com profissionais adultos é preciso haver um processo duplo: as emoções vindas de dentro têm que ser auxiliadas por um estímulo externo.

Preconceitos

Algumas vezes, o estudo e o raciocínio podem ajudar um ator a eliminar os preconceitos que o impedem de enxergar significados mais profundos, porém, outras vezes, o que ocorre é o oposto. Para alcançar o domínio de um papel difícil, o ator precisa ir até o limite de sua personalidade e inteligência - no entanto, em outras ocasiões, grandes atores podem ir ainda mais além, se ensaiarem as palavras e ao mesmo tempo escutarem atentamente seus ecos.

Mágico

John Gielgud é um mágico - sua forma de teatro é conhecida como a busca do incomum, do extraordinário, do diferente. Sua língua, suas cordas vocais, sua sensibilidade para o ritmo compõem um instrumento que ele desenvolveu conscientemente durante toda a sua carreira numa analogia com sua vida. Sua natural aristocracia interior e suas crenças exteriores, sociais e pessoais, deram-lhe uma hierarquia de valores, uma intensa diferenciação entre o fundamental e o precioso, além de uma convicção de que o exame apurado, a eliminação do supéfluo, a seleção, a divisão, o aperfeiçoamento e a transmutação são atividades infindáveis.

Arte

Sua arte sempre foi mais vocal do que física: em algum momento, no início da carreira, John Gielgud decidiu que, para ele, o corpo era um instrumento menos ágil do que a cabeça. Assim, abandonou parte de um possível equipamento de ator, mas fez uma verdadeira alquimia com o resto. Não é somente a fala e a melodia, mas também o movimento contínuo entre o mecanismo formador de palavras e sua compreensão que fizeram sua arte tão rara, tocante, e, especialmente, tão consciente. Com Gielgud, percebemos tanto o que está expresso quanto a perícia do criador e, então, nossa admiração aumenta pelo fato de uma arte poder ser tão hábil. A experiência de trabalhar com ele foi uma de minhas maiores e mais especiais alegrias.

Comunicação

Paul Scofield dirige-se a seu público de uma outra maneira. Enquanto que, em Gielgud, o instrumento fica a meio caminho entre a música e o ouvinte e, portanto, exige um ator treinado e hábil, em Scofield, instrumento e ator são uma unidade, um instrumento de carne e sangue que se abre para o desconhecido. Conheci Scofield quando ele ainda era um jovem ator e possuía uma estranha característica: os versos o embaraçavam; entretanto, fez poesias inesquecíveis em prosa. Era como se o ato de dizer uma palavra mandasse, através de si mesmo, vibrações que ecoavam em volta significados muito mais complexos do que seu pensamento racional podia encontrar. Ele pronunciava uma palavra, como "noite", e, então, sentia-se compelido a fazer uma pausa; ao ouvir, com todo o seu ser os espantosos impulsos movimentando-se em alguma câmara misteriosa interna, experimentava a maravilha da descoberta.

Estrutura

Essas pausas e investidas profundas dão à sua representação uma estrutura de ritmos inteiramente pessoal e seus próprios significados instintivos. Para ensaiar um papel, ele deixa toda a sua natureza - milhares de antenas extremamente sensíveis - passar de um lado para o outro através das palavras, na representação. O mesmo processo faz com que, tudo que ele aparentemente fixou, se repita igual, mas absolutamente diferente a cada noite.

Exemplo

Costumo utilizar dois nomes bem conhecidos como exemplo, mas o fenômeno está sempre presente nos ensaios e continuamente reabre a questão da falta de prática e da experiência, da espontaneidade e do conhecimento. Existem também certas coisas que os atores jovens e desconhecidos são capazes de fazer e que estão além do alcance dos que têm mais experiência e habilidade. Houve épocas, na história do teatro, em que o trabalho dos atores era baseado em certos gestos e expressões aprovados; havia sistemas fixos de postura que hoje são rejeitados. Pode parecer menos óbvio que o pólo oposto, o método que dá liberdade ao ator de escolher qualquer dos gestos do dia a dia, seja igualmente restrito, mas, ao basear seus movimentos na observação ou na própria espontaneidade o ator não está sendo muito criativo.

Procura

Está procurando, dentro de si mesmo, um alfabeto que também está fossilizado, porque a linguagem de signos da vida que ele conhece não é uma invenção criada, mas sim fruto de sua própria condição. Suas observações do comportamento são, na maioria das vezes, feitas sobre suas próprias projeções. Aquilo que considerava espontâneo é filtrado e monitorado. Mesmo se o cachorro de Pavlov estivesse improvisando, ele, ainda assim, salivaria quando a campainha tocasse, mas ia achar que o mérito era todo seu: "Estou babando", diria ele, orgulhoso de sua ousadia.

Improvisação

Aqueles que trabalham com o improviso têm a chance de ver, com assustadora clareza, como as fronteiras da chamada liberdade são alcançadas rapidamente. Nossos exercícios em público com o Teatro da Crueldade, em pouco tempo levaram os atores ao ponto onde eles, todas as noites, faziam variações de seus próprios clichês - como o personagem de Marcel Marceau que se liberta de uma prisão para se confinar em outra.

Experiência

Por exemplo: fizemos uma experiência com um ator, na qual ele abria uma porta e encontrava algo inesperado. Tinha que reagir de diferentes formas: algumas vezes com gestos, outras com sons e ainda outras, através da pintura. Era incentivado a expressar o primeiro gesto ou grito que lhe ocorresse. Em primeiro lugar, isto tudo revelou uma grande quantidade de atitudes semelhantes: boca aberta em sinal de surpresa, o passo para trás, demonstrando medo. De onde vinham esses assim chamados gestos espontâneos? Obviamente, a verdadeira e instantânea reação interior era reprimida e substituída por certas imitações de formas já vistas. A pintura era mesmo mais reveladora: um pouco de terror diante da folha em branco e, então, a tranquilizadora idéia já pronta vinha para o resgate. O Teatro Mortal está escondido dento de todos nós.

Objetivos

Os objetivos da improvisação no treinamento dos atores durante os ensaios e exercícios são sempre de livrar-se do Teatro Mortal. Não é apenas uma questão de espadanar numa euforia autoindulgente, como os leigos geralmente suspeitam, porque isso vai fazer com que o ator seja levado novamente até as próprias barreiras, até o ponto onde, em lugar da verdade recém descoberta, normalmente coloca uma mentira. Um ator que representa uma grande cena de maneira falsa, parece falsa ao seu público, pois, a cada instante, na progressão de uma atitude do personagem para outra, ele está substituindo detalhes reais por falsos, por emoções minúsculas, transitórias e não-verdadeiras, através da imitação. Porém não se pode lançar mão desse recurso nos ensaios de grandes cenas, pois muita coisa está acontecendo e será complicado. A finalidade de um exercício é reduzir e retornar, limitar a área cada vez mais até que uma mentira venha à tona e seja descoberta. Se o ator consegue encontrar e ver esse momento, talvez possa se abrir para um impulso mais profundo e mais criativo.

Dupla

O mesmo acontece quando dois atores representam juntos. Na maioria dos casos, conhecemos a representação externa dos grupos. Grande parte do trabalho de equipe, do qual o teatro inglês é tão orgulhoso, é baseado em polidez, cortesia, racionalidade e assim por diante - um fac-símile que funciona sempre que os atores têm o mesmo estilo. Por exemplo: os atores mais velhos atuam muito bem juntos, o mesmo acontecendo com os bem jovens; mas, quando se misturam, apesar de todo o cuidado e respeito mútuo, o resultado é, muitas vezes, catastrófico.

Genet

Para uma produção de O balcão", de Jean Genet, que fiz em Paris, foi preciso colocar juntos atores de diferentes formações - clássica, cinematográfica, de balé, ou simples amadores. As longas noites de improvisações, que mais pareciam obscenos diálogos de bordel, serviram a um único propósito: capacitaram esse grupo heterogêno de pessoas a se unir e começar a encontar um modo de comunicação direta entre si.

Exercícios

Alguns exercícios fazem com que os atores se soltem uns com os outros de maneiras diferentes. Por exemplo: vários atores podem representar cenas diversas lado a lado, mas jamais falando ao mesmo tempo, de modo que cada um tem que estar muito atento ao todo para poder saber os momentos exatos em que deve falar ou, mais ainda, para desenvolver um senso coletivo de responsabilidade pela qualidade da improvisação e, também, para mudar em direção a novas situações tão logo a invenção compartilhada se torne sem interesse. Muitos exercícios são específicos para, primeiramente, soltar o ator, de modo a dar-lhe condições de descobrir por si próprio aquilo que existe somente dentro dele mesmo; em seguida, para forçá-lo a aceitar, sem, contestação, ordens externas, a fim de que, quando adquirir um ouvido suficientemente sensível, possa ouvir, dentro de si próprio, sons que jamais teria detectado de outra forma.

Monólogo

Um exercício valioso é dividir um monólogo de Shakespeare em três vozes, como um cânon, e, então, fazer três atores recitarem os versos repetidamente numa velocidade fragmentada. A princípio, a dificuldade técnica absorve toda a atenção dos atores, depois, à medida que conseguem dominar as dificuldades, são solicitados a pôr em relevo o significado das palavras, sem contudo variar a forma rígida. Isso pode parecer impossível porque, devido à velocidade e ao ritmo mecânico, o ator não pode utilizar sua expressividade normal. Depois, de repente, ele quebra uma barreira e descobre quanta liberdade pode existir dentro da mais rígida disciplina.

Estrofes

Uma outra variante é pegar as estrofes "Ser ou não ser, eis a questão" e distribuir uma palavra para cada ator, que formam um pequeno círculo e tentam dizê-las um após o outro, procurando produzir uma frase viva. É um exercício tão difícil que, instantaneamente, revela até para aquele mais improvável de ser convencido o quanto ele é fechado e insensível em relação ao seu companheiro. Após muito trabalho, quando a frase começa a fluir repentinamente, todos vivenciam uma liberdade emocionante. Vêem num lampejo a possibilidade de representação em grupo e também os obstáculos para atingir tal meta. Esse exercício pode ser desenvolvido, substituindo-se o verbo "ser" por outros, com o mesmo efeito de afirmação e negação. Eventualmente, é possível colocar sons ou gestos no lugar de uma ou de todas as palavras e, ainda assim, manter um vivo fluxo dramático entre os sete participantes.

Apavorante

O propósito desses exercícios é levar os atores a um ponto onde, caso um deles faça algo inesperado, os outros possam dar continuidade e responder no mesmo nível. Isso é representação em conjunto; em termos de atuação, significa "criação em conjunto", um pensamento apavorante. Não tem sentido achar que exercícios pertencem à escola e devem ser aplicados somente durante um certo período do desenvolviento do ator. Como qualquer outro artista, um ator é comparável a um jardim, de onde não adianta arrancar as ervas daninhas apenas uma vez. Elas crescem sempre, o que é perfeitamente natural, e precisam ser arrancadas, o que é natural e necessário.

Eliminação

Os atores podem estudar através de métodos variados, mas têm que fazer, principalmente, um ato de eliminação. O título "A construção do personagem", obra de Stanislavski, é enganador porque um personagem não é uma coisa estática e não pode ser construído como uma parede. Os ensaios não levam progressivamente a uma noite de estréia. Alguns atores sentem dificuldades em entender isso - principalmente os que se orgulham de sua própria arte. Para os atores medíocres, o processo de construção do personagem tem momentos agudos de angústia artística: "O que irá acontecer desta vez?", "Sei que já fiz papéis de muito sucesso anteriormente, mas, desta vez, será que vai surgir a inspiração?".

Terror

Esse ator chega aterrorizado para o primeiro ensaio mas, aos poucos, sua prática preenche o vácuo de seu medo. À medida que "descobre" uma maneira de interpretar cada cena, segura-a com unhas e dentes, aliviado por mais uma vez ter sido poupado da catástrofe final. Então, na noite de estréia, embora nervoso, seus nervos estão como os do perito em tiro que sabe que pode atingir o alvo, mas teme não conseguir acertar na mosca, com todos os amigos presentes.

Pânico

O ator verdadeiramente criativo entra num processo de pânico diferente e bem pior que esse, na noite de estréia. Durante todos os ensaios, esteve explorando os aspectos de um personagem, os quais sente serem sempre parciais e pouco verdadeiros - assim, se vê compelido, pela honestidade de sua busca, a abandoná-los e começar tudo de novo, continuamente. Um ator criativo estará mais predisposto a se livrar das camadas enrijecidas de seu trabalho, no último ensaio, pois com a aproximação da noite de estréia, um brilhante holofote está voltado em direção à sua criatividade e, desta forma, conseguirá ver sua terrível insuficiência.

Anseio

Além do mais, o ator criativo anseia por se agarrar às suas descobertas e deseja a todo custo evitar o trauma de aparecer em público, sem proteção e despreparado - embora seja exatamente isso o que deva fazer. Precisa destruir e abandonar os resultados conseguidos, mesmo se os que obtiver depois parecerem quase iguais aos primeiros. Os atores franceses têm mais facilidade nesse aspecto do que os ingleses, pois, em termos de temperamento, são mais abertos à idéia de que o nada tem algum valor. Esse é o único modo de um papel, ao invés de construído, nascer espontaneamente. O papel "construído" é o mesmo todas as noites - exceto pelo desgaste paulatino. Para que o papel espontâneo seja o mesmo, precisa renascer sempre, o que o torna sempre diferente. É claro que, particularmente numa longa permanência em cartaz, o esforço de uma criação nova diariamente torna-se insuportável e inconcebível, e, então, o artista criativo e com experiência é compelido a retroceder a um segundo nível chamado de "técnica de apoio".
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O presente artigo, aqui resumido, consta da revista Cadernos de Teatro nº 132/1993, edição já esgotada. O artigo foi extraído de "Actors on Acting, Crown Pub., N. Y, tradução de Maria José Pimenta. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio.






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