quarta-feira, 29 de abril de 2009

Estilo da obra e interpretação

Michel Saint-Denis


A noção de estilo é hoje impopular; ela é ao mesmo tempo confusa, particularmente nos países que, em sua língua nacional, não possuem obras antigas e daí não poderem confrontar ou referir suas produções contemporâneas ao conjunto de obras que possuem os países velhos pelas suas tradições. A palavra "tradição" está abandonada; ela é justamente suspeita; por não poderem se transmitir, as tradições esterilizam as obras e as embalsamam; a fidelidade às "tradições estabelecidas" em alguns planos elevados, só pode originar convenções e por isso elas corrompem as obras que desejam servir. Não é de admirar-se que seja justamente nos países de "tradição" que a noção de "estilo" seja impopular ao máximo - os "tradicionalistas" manipularam o "estilo" durante muito tempo, como uma defesa contra qualquer mudança, contra qualquer evolução natural. Eles agora estão completamente derrotados - as tradições estão condenadas e a noção de estilo, acusada de favorecer o artifício e a mentira está afastada por ser convencional e retrógrada.

Luta

Na verdade, de maneira geral, países novos e países antigos combinam hoje suas forças mais vivas e mais adiantadas para entrar em luta contra os valores profundos que estão na base de nossas civilizações desde a Renascença e disso resulta de um lado uma reação salutar de onde emanam novas obras de características múltiplas e contraditórias que testemunham os tormentos e a riqueza de nosso tempo e, de outro lado, suscita seja a rejeição rápida de obras relativamente recentes consideradas retóricas, formais ou preciosas, seja a adaptação de obras antigas interpretadas "à maneira moderna", desprezando-se o estilo original, em negação a qualquer valor "tradiconal". Mas aqui é necessário discriminar.

Concordância

Quando uma época é passada, o que vai constituir sua tradição são as obras que permanecem e que são dotadas de força necessária para sobreviver. É evidente que cada época subsequente não poderá interpretar essas obras passadas de maneira viva senão conforme o espírito que lhe é próprio. E ainda é necessário que haja uma concordância entre esse espírito e a própria natureza da obra, de modo que o texto a revele, apenas o texto, despojada de todas as "tradições de interpretações" de uma época anterior. As tradições de representação são muitas vezes frívolas e efêmeras. Mas parece-me importante afirmar diante de um auditório preocupado com a formação teatral, que na arte dramática de cada país se constitui pouco a pouco uma tradição autêntica, que lhe é transmitida pelos textos, em língua original (somente pelos textos e na língua original apenas) e que o sinal e o instrumento dessa tradição é o estilo. Eis que voltamos à noção de estilo.

Estilo

O estilo não é monolítico. Não me ocupo do estilo de um período. Não confundo aqui estilo com período histórico. O que me interessa, em vista de nosso estudo dos diferentes tipos de improvisação, é o estilo de uma obra. Ouvi Peter Brook dizer que, em determinada obra de Shakespeare, há todos os estilos - do naturalismo à poesia épica ou lírica. Para mim, o estilo das grandes obras de Shakespeare é feito dessa verdade; a unidade de estilo não se destrói mas se enriquece. O que chamo de estilo de uma obra é a sua forma.

Revelação

A figura revela o homem - a figura de um homem não é sempre fácil de decifrar, mas ela conta, ela é testemunha de uma vida quando chega a velhice. A forma de uma obra demonstra a natureza dessa obra, de sua idade entre as obras de um mesmo autor; o estilo expressa o conteúdo de uma obra, como a figura representa o homem - é inimaginável separar ou mesmo distinguir estilo e conteúdo. Quem dirá qual deles deu nascimento ao outro? Poderá haver conteúdo não havendo forma? Samuel Beckett me dizia que sua intenção, seu pensamento só existiam a partir da forma, que antes da forma ele não sabia exatamente o que iria fazer com seu pensamento. E essa forma é o estilo, ligado à obra, como a pele está ligada ao ser.

Coração

A figura é às vezes secreta; também o estilo. É preciso saber decifrá-lo para chegar ao coração da obra. É preciso saber reconhecer um estilo e isto não é fácil. É muito difícil ler uma obra de Shakespeare (no texto original) e deixar o estilo, em sua variedade, vir à tona (e estilo não é só linguagem, é também composição); para mim, é necessário, antes, uma atitude objetiva - o subjetivo terá sua oportunidade de revanche - mas creio que o essencial, no início, é manter a obra à distância, questioná-la sem cessar, antes de se apaixonar por ela e possuí-la.

Dificuldade

A mesma dificuldade existe para todas as obras verdadeiras; quem diz obra verdadeira, de qualquer época, dis estilo. Conheceis o famoso exemplo de Tchecov e da Gaivota. A peça foi primeiro representada por um teatro acadêmico, conforme a atitude, a "tradição da representação" habituais da época: os atores "diziam" o texto, preocupados, imagino, com a beleza formal, e a peça fracassou. Foi necessário vir Stanislavski, que estudou a escola de Tchecov, reconheceu sua figura própria, isto é, o estilo impressionista. Partindo da natureza do texto, ele percebeu que era necessário encontrar a continuidade de vida e de amor dos personagens por trás do texto para que ele finalmente tivesse um sentido dramático. Foi a invenção do que os americanos e ingleses chamavam de "subtexto", e o ponto de partida de todas as improvisações realistas destinadas a nutrir o jogo dos atores pela descoberta de uma continuidade psicológica por detrás do texto.

Perigo

Descoberta preciosa para o teatro realista, impresisonista e elíptico; descoberta perigosa quando é aplicada sem discriminação a todos os estilos: ela leva, se levada ao exagero, à criação na consciência dos atores, de um mundo essencialmente psicológico, emocional e subjetivo, que pode entrar em conflito com o estilo das obras em que a psicologia tem menos importância e que a união da forma e de conteúdo é indissolúvel.
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Este artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº 58/1973, edição já esgotada.

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