quarta-feira, 1 de abril de 2009

A arte é uma atitude

Adolphe Appia

A maior parte das grandes reformas do teatro contemporâneo foram rigorosamente formuladas por Adolphe Appia, em maquetes de cenários e em seus escritos, a partir de 1888. Seus trabalhos mais originais se referem à arquitetura cênica e à iluminação. Eles permitiram renovar a própria noção do espaço cênico rompendo com a arquitetura italiana e a substituição dos telões pintados por dispositivos construídos, praticáveis, dando à ação, através do corpo do ator, toda a sua eficácia.

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Essa atitude deveria ser o bem coletivo de nossa humanidade. Nós, ao contrário, a especializamos e tornamos pessoal ao artista criador da obra de arte. Uma história da arte tornou-se, portanto, a enumeração cronológica dessas obras e de seus diferentes processos. Temos a música, a arquitetura, a escultura, como se a arte fosse necessariamente pedras trabalhadas, sons, cores - e até palavras. Nossos museus, nossos concertos e bibliotecas parecem confirmar isso. Há menos de 20 anos, essas instituições pareciam repousantes: elas representavam a arte e eram seus gloriosos depositários.
Elas não o são mais.
Nós deixamos nosso assento. De pé, nós queremos sê-lo, e estamos prontos a todas as violências para obtê-la. Nós buscamos a arte e queremos achá-la em nós próprios. Rompemos as fronteiras, escalamos de um salto os degraus que nos separam do podium, descemos sem hesitar até a arena.
À entrada de uma obra consagrada ao teatro, essa afirmação se impunha.

Inteligência
Ora, ela pressupõe o dom de nossa inteligência, e o dom do nosso corpo. Para "sê-lo", é preciso, tal como um neófito, procurar o ponto de convergência da obra de arte e da nossa personalidade integral. Em matéria de teatro, esse gesto, certamente novo, coloca em nossas mãos a chave do problema cênico.

Orgulho
É a solução de que podemos realmente nos orgulhar. Que faria, de fato, nosso corpo dos telões pintados do cenário e por que embaraçá-lo e peá-lo neles, quando ele se oferece por sua livre escolha? Mas, também, que devemos exigir da cena para valorizar um corpo d'agora em diante em função da arte e que não quer decair? E se o sabemos, por que não penetrar nesse espaço?

Consciência
Os esportes e a conquista do espaço nos tornaram conscientes da existência efetiva de nosso corpo: responsáveis, nós buscamos estender essa responsabilidade aos espaços que percorremos, ao solo ao qual conferimos uma realidade tão ardente. E continuaremos a permanecer plácidos em nossas cadeiras, diante de um espaço em que corpos semelhantes ao nosso são domesticados e aviltados?...- porque ainda é esta a cena de nossos teatros: o objeto supremo da arte, o corpo vivo, o nosso, nossos cenários o violam e o degradam.

Suposição
Suponhamos dois pólos opostos: de um lado a arte dramática, isenta de qualquer compromisso; do outro, qualquer espetáculo destinado apenas ao prazer visual. Quanto mais a arte dramática se aproxima do espetáculo apenas em si, mais ela diminuirá seu valor dramático. Do mesmo modo, o espetáculo perderá em riqueza e variedade, se ele se inclina para qualquer tipo de dramatização.

O corpo
Que restará da arte dramática privada das complacências que pode permitir-se a arte simplesmente representativa? Resta-lhe o corpo vivo do ator! Ora, esse corpo tem três dimensões e, além disso, é móvel. Cenário pintado em telões verticais têm duas dimensões e representa objetos, luzes e sombras fictícias. O ator é uma realidade viva que não é tocada por essas luzes e essas sombras pintadas, e que não seria capaz de entrar em relação orgânica com objetos pintados.

Iluminação
A iluminação que mostra a pintura não se destina ao ator e, entretanto, essa iluminação o atinge. A iluminação destinada ao ator atinge a pintura e falseia seu aspecto pictural. Essas contradições manifestas obrigam a instaurar uma hierarquia racional entre os meios de expressão cênica.

Justiça
O ator, como é justo, ocupará o primeiro lugar. Depois virá a disposição geral da cena, cujo papel implica em que ela se destina unicamente ao ator, às suas dimensões e à sua mobilidade. Em seguida vem a luz toda poderosa. Em último lugar, a pintura, cujo papel está definitivamente subordinado aos três elementos que lhe são superiores. A pintura não implica em si só quanto à cor. A cor concerne também ao ator, ao espaço e à luz; a luz por definição.

Consequências
Essa hierarquia impõe ao diretor um conjunto de consequências independentes de sua imaginação e de sua livre escolha. O espaço cênico, sobretudo, cujas linhas e rigidez devem se opor à forma viva do ator. Porque é em sua resistência a essas formas e à sua mobilidade que o espaço adquire vida e colabora para a harmonia da representação.

Começo
No começo eu disse que nós queremos "sê-lo"; que nós tínhamos reencontrado nosso corpo, perdido há séculos, e que experimentávamos uma responsabilidade nova, uma impressão de solidariedade semelhante a algum imperativo categórico subitamente revelado. Nós deixamos de ser espectadores. Esse papel de pouco valor começa a nos repugnar, em qualquer lugar onde nos encontremos.

Retribuição
E tentemos uma retribuição enquanto nossas formas caducas voam ao vento no mais belo ao-ar-livre. A dança, a plástica animada fazem prte de um repertório indeterminado que vai se confundir com os esportes. Música, palavras, espetáculos vários, simplificação ou estilização, todas se alternam e se penetram. Essa anarquia é perturbadora, mas pressentimos que está aí a saída: seu desenlace depende de nós, de uma determinação estética que deve produzir-se organicamente, sem sobressalto nem lacuna.

Futuro
Virá o tempo em que os profissionais do teatro e as peças que lhes são destinadas estarão para sempre superadas. Em que a humanidade, liberta, cantará em símbolos animados, mais ou menos dramáticos e consentidos por todos, suas alegrias e tristezas, seus pensamentos íntimos, suas lutas, derrotas e vitórias, e de que os espectadores serão unicamente aqueles cuja idade e enfermidades agruparem em torno de nós numa viva comunhão e simpatia. O tempo em que nós seremos artistas - artistas vivos, porque quisemos sê-lo. Esse tempo, eu anseio por ele com todos os meus votos.
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(Este fragmento de artigo foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº 51/1970, edição já esgotada)

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