quinta-feira, 12 de março de 2009

Pensando teatro

Sérgio Fonta


Como se não bastasse suas crises cíclicas, o teatro brasileiro perdeu, em menos de 30 anos, muitos de seus pensadores, ficando mais só na radiografia de seus sonhos, problemas e ambições. Nesse período já se foram Anatol Rosenfeld, Luiza Barreto Leite, Yan Michalski e Décio de Almeida Prado, entre muitos outros. E também dramaturgos do porte de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Plínio Marcos e Dias Gomes que, além de criarem peças antológicas sobre desigualdade social, repressão, sincretismo e excluídos, se inseriam entre aqueles que melhor analisavam a trajetória do teatro nacional em todas as suas vertentes, deficiências e possibilidades. É só checar obras como Papa Highirte, Rasga coração, Dois perdidos numa noite suja, A invasão, O pagador de promessas e Gota d’água, entre tantas mais que eles escreveram, para constatar que o Brasil e o brasileiro lá estavam no centro da ação e da batalha. Com a mesma sintonia e acuidade que demonstravam quando teorizavam (será este o verbo?) sobre teatro e o pensavam com extremo amor e lucidez.
Em 1975, em entrevista concedida ao extinto Livro de cabeceira do homem (Ed. Civilização Brasileira), Paulinho Pontes nos dizia:
“(...) O que acontece é que este país não tem direito de transferir de geração para geração o que cada geração acumula. Entre o esforço de uma geração e outra, tem sempre uma moda colonialista fazendo um corte no meio e criando esse fosso entre as gerações. Na minha geração, por exemplo, tive que aprender tudo do zero. Com você vai ser a mesma coisa. Quando chegarmos na nossa maturidade, descobriremos que mil caminhos percorridos foram errados e inócuos, pois já tinham sido percorridos no passado e não sabíamos. Um esforço bom que se faria era tentar levantar uma bibliografia séria de todas as gerações. A gente ia descobrir que há uma história da cultura brasileira a ser contada. Há uma experiência de espetáculos mais do que centenária e que o jovem homem de teatro não precisa começar sua vida criadora do nada. Há uma história do teatro brasileiro feita pelos nossos coroas. Eles foram muito bacanas. Se você visse a luta do velho Oduvaldo Vianna, Armando Gonzaga, França Jr., a luta ideológica dessa geração para fazer teatro com prosódia brasileira, se isso fosse contado sem preconceito, nossa geração teria que se ajoelhar diante desses velhos. Se você visse a luta contra a censura dos comediógrafos dos anos 40, como era participante essa luta, tão próxima de nossos ideais. Mas a gente nasce para contestar em bloco o que nos precedeu por ignorância e porque a geração anterior não nos entrega bastão nenhum. Isso é uma vitória do colonialismo cultural sobre nós. Essa pulverização da nossa história é vitória. Eles gostam de nos ver seccionados, cada um no seu canto, só, e por isso, frágil. Não gostam de nos ver unidos às gerações que tiveram os nossos mesmos ideais”.

Bandeiras
Era ou não era pensar teatro? Posturas ou colocações deste quilate, volta e meia, faltam em nossa tribo, apesar de nomes como Sábato Magaldi, Maria Thereza Vargas, João Roberto Faria, Maria Helena Kühner, Gerd Borheim - ao lado dos nossos Guarnieris, Joãos das Neves, Aderbais, Antunes e Zé Celsos de ontem, de hoje e outros que estão chegando - continuarem fincando bandeiras, luzes e posições. Mas, de um modo geral, na atual inteligentzia, sem contar os exemplos acima e mais alguns poucos, ou se fazem verdadeiros tratados acadêmicos - indispensáveis ao perfil de nossa história cênica, porém, restritos a estudiosos e pesquisadores - ou tudo se superficializa, se banaliza em matérias circunstanciais e episódicas na imprensa.
Torna-se, portanto, cada vez mais oportuna a realização de seminários, simpósios e congressos que busquem uma perspectiva histórica, que organizem as idéias e tendências, que procurem situar o momento presente embasados no passado e de olho no futuro. Como ocorreu no I Congresso Brasileiro de Dramaturgia, promovido recentemente em São Paulo pela Sociedade Brasileira de Autores (SBAT), ao lado do Instituto Cultural Chiquinha Gonzaga e contando com o apoio de diversas entidades paulistas, tudo sob a iniciativa e curadoria do diretor e autor Hersch Basbaum.

Aglutinação
Quando o assunto é Dramaturgia e, em especial, dramaturgia brasileira, terreno tão cobrado por alguns de nossos colegas, que reivindicam mais qualidade neste setor - ela existe, porém, muitos preferem negar, ou mesmo, não conseguem detectar - fica evidente a necessidade de uma aglutinação para pensar junto. Por isso foi um êxito o I Congresso Brasileiro de Dramaturgia. Neste evento se pensou Teatro. Em alto nível. Questões fundamentais foram discutidas em conjunto, debateu-se, especulou-se, definiu-se. Uma procura expressiva de espectadores, com mais de 300 inscrições, quase 100% de freqüência, durante os três dias do Congresso, de nove da manhã às nove da noite, com 33 palestrantes e intensa participação de uma platéia ávida que lotou o Teatro Sérgio Cardoso, onde aconteceram os painéis, sempre pronta a ouvir e a questionar.
Nomes como Lauro César Muniz, Sergio Carvalho, Tânia Brandão, Aimar Labaki, Bosco Brasil, Alberto Guzik, Gianni Ratto, Luiz Carlos Saroldi, Tanah Corrêa, Chico de Assis, Analy Alvarez, Carlos Meceni, Jorginho de Carvalho e José Celso Martinez Corrêa, entre muitos outros, lá estiveram enfocando a dramaturgia sobre os mais variados aspectos, falando sobre teatro político, teatro engajado, teatro dialético, o dramaturgo e a modernidade no tema, no texto e na montagem, visões atuais da História do teatro brasileiro, a evolução da cenografia e da luz sob o prisma dramatúrgico, o melodrama, a consolidação da dramaturgia feminina, o teatro e o rádio, a dramaturgia no teatro de estádio, além de abordar a problemática do direito autoral com a palavra dos especialistas Sérgio D’Antino e José Carlos Costa Netto. Enfim, tudo o que diz respeito ao motivo primeiro do congresso foi exaustivamente analisado, ajudando a delinear um pensamento teatral brasileiro de hoje. Uma overdose saudável do palco e seus alicerces.

O evento
O I Congresso Brasileiro de Dramaturgia foi aberto pelo jornalista e escritor Carlos Eduardo Novaes, presidente da SBAT, e pelo dramaturgo e romancista argentino Augustin Perez Pardella (presidente da Argentores, a sociedade de direito autoral portenha, e indicado, nada mais, nada menos, para o Prêmio Nobel de Literatura de 2002, o que pouca gente sabe por aqui). Contou também com a participação de vários órgãos e entidades como as secretarias Estadual e Municipal de Cultura do Estado de São Paulo, a Confederação de Teatro Amador, a Apetesp e diversos grupos teatrais, que se apresentaram nos intervalos dos painéis.
Houve também homenagens, uma delas dedicada a Tatiana Belinky, autora e diretora que profissionalizou o teatro infantil em São Paulo, em 1948 (mesmo ano em que, no Rio, o fazia Lúcia Benedetti, sendo sucedida, tempos depois, pela sempre eterna e querida Maria Clara Machado). Aos 80 anos, Tatiana Belinky, que já escreveu 90 livros, transmite uma vitalidade, uma firmeza e um entusiasmo dignos de registro e de respeito.

Agência
Durante o I Congresso foi também sugerida a criação de uma agência de autores que congregasse e divulgasse dramaturgos de todo o Brasil filiados à SBAT, com leituras de textos e debates internos, visando uma posterior veiculação desses textos e sinopses através de ciclos, edições ou até mesmo via internet. A idéia foi recebida de forma tão entusiástica que a agência até já conseguiu um local para funcionar - Espaço Cultural Lélia Abramo (SP) -, sob a coordenação do ator Bicudo Jr. E agora começa a formatar seus principais objetivos:
1) Desenvolvimento e divulgação dos autores.
2) Criação de um controle de qualidade e um banco de textos.
3) Intercâmbio entre autores e atores.
4) Estruturação de uma comissão para estudar textos.

Este último item obedecerá ao seguinte cronograma: uma vez concluída a primeira triagem de textos, eles serão apresentados, em leitura, a uma platéia específica formada por produtores, elencos, grupos e companhias. Uma vez lida a peça, serão confeccionados, a cada dois meses, livretos contendo todas as informações sobre as peças, as quais serão oferecidas em escolas, faculdades de teatro e similares. É o autor indo à luta por seu espaço de forma concreta, um dos frutos do I Congresso que, além de discutir idéias, parte para a ação e a para dinamização de seus objetivos.
O próximo Congresso Brasileiro de Dramaturgia, uma usina de pensar teatro que esteve e estará aberta a todos os interessados, deverá ser efetivado novamente daqui a dois anos, no Rio de Janeiro. Pouco a pouco, ele irá sedimentando-se e distribuindo-se em outras capitais em busca de um mapa do Brasil. Não o mapa que Cabral procurou traçar e, sim, o mapa de Dionysos, que demarca as regiões com a emoção e a técnica, através de palcos, peças, gambiarras, urdimentos, coxias e refletores. E aplausos.
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Sérgio Fonta é ator e escritor

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