quarta-feira, 11 de março de 2009

O pintor de paredes
e o teatro como arte marcial

Augusto Boal


Quando Paul Heritage me pediu para abrir este Simpósio, tive medo. Não porque não tivesse o que dizer - sempre temos, todos nós, o tempo todo: por isso não nos calamos, nunca! Mas sim porque se trata de um evento da maior importância e, nos eventos da maior importância, devemos dizer coisas que são as mais importantes. As coisas que, para mim, hoje, são as mais importantes, já eram importantes há dois anos quando Paul Heritage organizou evento similar no Barbican Theatre, em Londres; ou em 71, quando fui oficialmente banido do território nacional - dada a minha extrema periculosidade! - pela ditadura cívico-militar que assolava o país naquela época; ou em 64, quando esse mesmo governo autoritário subverteu a democracia...ou, ou, ou...muito, muito, muito antes.
O que era importante, ontem, continua sendo ainda mais, hoje. Se eu contar o que é importante pra mim, hoje, vou repetir idéias e palavras que já disse, ontem. Por isso o meu justificado medo. Não quero repetir as mesmas palavras, para as mesmas pessoas, como a minha querida amiga Cicely Berry, ou Prosper Kampaorê, que também estiveram em Londres. Mas também não quero mudar de opinião em busca frenética de originalidade. Não sou nenhum presidente da república!
Só fiquei tranqüilo quando tomei a decisão inabalável: vou dizer exatamente as mesmas coisas que sempre disse - é inevitável! - mas vou usar outras palavras.

Mundialização
Começo como sempre fiz, separando uma coisa da outra, antes de juntá-las, no fim. Começo falando da Mundialização, como dizem os franceses - vocês viram que não usei a palavra Globalização que uso sempre, mas é a mesma coisa.
O que é que está se mundializando? Basicamente, a propriedade privada. A esse respeito, existem duas ideologias fundamentais no mundo de hoje: uma diz que a Humanidade é uma só, somos todos humanos irmãos, portanto, o Estado deve tomar a seu cargo oferecer oportunidades iguais a todos os cidadãos, sem levar em conta o berço, principalmente naqueles consabidos setores da saúde, educação, trabalho, moradia, Direitos Humanos, Direitos da Mulher, essas coisas que estão lentamente saindo de moda. Essa ideologia humanística, que afirma que temos, todos, os mesmos direitos, utiliza palavras orgulhosas que, hoje, a gente tem até vergonha de pronunciar. Palavras como solidariedade, amizade, fraternidade, Pátria. Palavras do tempo da valsa, polca, minueto, Chiquinha Gonzaga, do tempo dos tristes Pierrôs e alegres Colombinas, carnaval de rua. Ah, como o tempo passou depressa...Hoje, vivemos “heavy metal”. Os tempos mudaram.

Jangada
A outra ideologia diz que o ser humano é animal predatório, sim, não tem jeito, é carnívoro. Uma fábula antiga explica essa ideologia. A Jangada de Medusa conta a história de náufragos em cima de uma jangada à deriva: sem comida, decidiram primeiro comer os mais fracos. Queriam sobreviver e foram comendo só moribundos que já iam morrer mesmo, os aleijados, as criancinhas indefesas; depois, por falta de maior oferta, começaram a comer os mais atléticos, após luta encarniçada; foram-se comendo uns aos outros, até que na jangada sobrou apenas um único ser humano vivo, faminto, que se devorou a si mesmo. Começou pelas partes mais dispensáveis do corpo: dedos, artelhos, o braço esquerdo, a perna do mesmo lado, foi comendo o próprio corpo e acabou por comer os intestinos, já que não tinha encontrado nada de mais substancial e nutritivo, nem na cabeça nem no coração! A última coisa que o náufrago comeu foi a própria boca!
Essa ideologia canibal também se chama Modernidade, palavra elegante, e eu fico contente porque estou usando palavras novas - ninguém pode dizer que eu me repito. Canibalismo é Mo-der-no! Nossos governos, com freqüência, dizem que nós precisamos nos mo-der-ni-zar, sermos menos caipiras retrógrados, isto é: mais Canibais.
Nesse confronto, humanismo versus canibalismo - Tiradentes versus Joaquim Silvério, como diria Barbosa Lima Sobrinho! - estão vencendo os canibais, é lógico: são ferozes. Eles estão canibalizando os bens do Estado, aquilo que pertence a todos. A esse banquete, dão o nome de Privatização. Privatizam tudo: o que era de todos, passa a ser só de poucos. Privatizam infra-estruturas, siderurgias, fábricas, energia, cabotagem, petróleo, comunicações, tudo o que é importante para todos, o que era de todos, passa a ser só de alguns: isso é ser Moderno. (Aqui temos um extraordinário motivo de orgulho: nós, artistas, somos tão importantes que eles também estão privatizando a todos nós! Vivemos os gloriosos tempos da privatização da Cultura. Alelúia! Finalmente foi reconhecido que nós, artistas, servimos para alguma coisa)

Conseqüências
Quais são as conseqüências funestas dessa privatização? Aquilo que o artista cria é obra de arte - não é produto. O artista - seja ele poeta solitário escrevendo um poema ou grupo de empregradas domésticas na Tijuca, fazendo teatro! - é aquele que cria o novo, aquilo que só ele pode fazer: a obra de arte é a identidade do artista, sua unidade, é uma extensão de sua pessoa; é inalienável, não se pode vender porque o artista estaria se vendendo a si próprio, não apenas a sua obra, sua arte. Ao contrário do artesão, que cria ad infinitum o mesmo modelo.
O pintor de paredes é artesão: pinta minha casa de branco, como qualquer outro poderia fazê-lo. A personalidade, a vida, o estilo do pintor não contam - importante é que minha casa se torne alva como a neve. Ninguém assina uma parede branca!
O pintor de paredes produz um produto: a parede branca. O artista Van Gogh não produz produtos, cria arte. Sua arte é só sua, seus girassóis só ele poderia pintar, o rosto triste daquele velho sentado em cadeira de vime, só Van Gogh viu. Gostem ou não gostem, Picasso faz o que só Picasso poderia ter feito. Da mesma forma, a mulher rendeira do Ceará: ninguém faz igual a ela o seu bordado. Ninguém, nem Picasso, nem Van Gogh: a rendeira do Ceará não pode ser substituída por ninguém, nem por uma máquina de costura. Os atores do Vidigal e aqueles que “tão na rua”, os músicos de Vigário Geral e os bailarinos do Luar, não podem ser trocados pelo Balé Maurice Béjart - cada qual tem sua identidade.

Prisioneiro
Um prisioneiro fazendo teatro numa cela de Brasília ou de Manchester, re-pensando seu passado, ou um cidadão de Santo André ou Porto Alegre inventando o seu futuro, mais participativo, são diferentes de um cantor de ópera, ou sambópera, cantando a Carmem de Bizet: mas todos são artistas, e cada qual, por ser cada um, é insubstituível. Mestre Vitalino é artista - criou o novo, arte; os que o imitam são apenas excelentes artesãos, criam produtos.
Porém o artista não cria apenas para si mesmo: sua arte pode se transformar em mercadoria. Ao se tornar mercadoria, com a profissionalização do artista, cria-se o gozo alheio. O gozo pode tornar-se necessário e pode se tornar, também, mercadoria. Produto!
Aqui reside o perigo mortal: quando cria arte, o artista responde a uma necessidade sua - social e afetiva -, responde à sua maneira de ver, sentir, pensar; quando esta se transforma em mercadoria, introduz-se um elemento perigoso: a demanda externa prioritária, a encomenda, o mercado. A arte, transformada em mercadoria, enfrenta o desafio das prateleiras, os rituais do leilão, o preço.

Mercantilização
A privatização da cultura traz implícita a mercantilização da arte. Não é mais o Estado que oferece a todos iguais oportunidades: é o Mercado. O mercado deseja mercadorias - produtos que se possam multiplicar -, vender, dar lucro - deseja vender sempre o mesmo produto, ainda que, para isso, mude o papel do embrulho.
No mundo que se pretende globalizar, mundializar, robotizar, a obra de arte perde sua razão de ser, dá lugar ao produto único. O Mercado opera em nós a Prótese do Desejo, extirpa nosso desejo, implanta em nós o desejo do mercado. Tenho que cantar com a garganta do cantor de sucesso da TV; bailar com as pernas de outro bailarino, não com as que tenho; ver o mundo com olhos alheios. Chorar a lágrima que não é minha, sorrir o sorriso que esculpiram no meu rosto, como se fosse pedra.
Eu peço: cantemos com a nossa voz, bailemos com o nosso corpo, digamos a nossa palavra. O teatro é uma representação da realidade, não é a realidade; em si mesma, porém, essa representação é real. A imagem do real é real enquanto imagem. Devemos fazer, em nosso teatro, as nossas próprias representações da realidade e não apenas reproduzir as realidades que vemos na Tv e nas telas, porque estas representações são as que foram preparadas para nós pelos Canibais. A arte de cada grupo popular deve, ao contrário, ser única: deve ser a arte desse grupo! Sua identidade! Essa deve ser a arte dos Humanistas, aqueles que negam a robotização e afirmam diferenças: somos homens, somos mulheres, temos a pele negra e temos a pele branca, temos olhos azuis e olhos castanhos, e a nosa esperança é verde!

Resistência
Simpósios como este são focos de resistência. Nas diferenças, vamos encontrar nossas identidades! Cada um de nós aqui vem para dizer quem é, e é para descobrir quem somos. Neste teatro, hoje, aqui se encontram artistas que vieram da África Negra e do Norte da África; do Reino Unido na Europa, e do Caribe na América Central; de Fortaleza e Salvador, Porto Alegre e Santo André, Jacarepaguá e Ouagadougou, e tenho certeza de que esqueço outras geografias.
Este Simpósio é lugar de diálogo; diálogo supõe semelhantes diferentes: somos diferentes pelas culturas onde crescemos, países em que vivemos; somos iguais pela determinação de sermos nós mesmos, em nos recusarmos a ser extensões do mercado; somos semelhantes pelo desejo de dizer que nós somos nós, e cada um de nós, para que seja “nós”, antes de tudo é um “eu” - tem a sua identidade! Temos a nossa!
O teatro é um meio privilegiado de descobrirmos quem somos, ao criarmos imagens do nosso desejo. Teatro é arte e sempre foi arma. Hoje para nós, mais do que nunca, lutando pela nossa sobrevivência cultural, o teatro é arte que nos revela nossa identidade; é arma que a preserva.
O teatro é uma arte marcial!

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Palestra de Augusto Boal na abertura do simpósio Mudança de Cena, ocorrido no Rio de Janeiro entre os dias 8 e 11 de junho de 99, promoção do British Council.
Augusto Boal é fundador e diretor do Centro do Teatro do Oprimido - Av. Rio Branco, 179, 6º andar, Centro, Rio de Janeiro, RJ. (ctorio @ domain. com. br)

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Um comentário:

  1. Sou aluna de mestrado em artes cênicas pela UFRGS e minha pesquisa é sobre crítica teatral na era digital. Gostaria de fazer contato contigo. Podes me passar o teu email? O meu é helena@webeditoria.com.br

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