quinta-feira, 12 de março de 2009

Criação da personagem

David Herman

O iniciante adora criar personagem. Ele coloca um chapéu, óculos, usa bengala e pronto: uma personagem! E ele não está totalmente errado. O conceito de criação da personagem reconhece que todos os seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas em peças teatrais. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev hoje e Hamlet semana que vem, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismos. Treplev e Hamlet, embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e características próprias.
Mas não se constrói uma personagem de vez. Não se pode vestir a personagem do mesmo jeito que se veste um figurino. A criação da personagem é um processo. Como é, então, a maneira de abordar este processo de criação da personagem com sua eventual caracterização? Como se dá a criação do comportamento externo com as características marcantes e indispensáveis da personagem? Como é que criamos este ser único com sua individualidade psicológica e física?

Perspectiva
O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de se surpreender e até, às vezes, ser contraditória. Não é útil partir para a construção perguntando “como é a minha personagem?”, já que ela está em constante transformação. Stanislavski disse: “não faz a personagem; a alimenta”. Mas o aluno quer saber: “como é que posso resolver a minha personagem?”. Respondemos: “qual é o ser humano que está resolvido? Você é resolvido? E se tal pessoa existisse, seria interessante colocá-la no palco?”
Primeiro precisamos entender o contexto do papel. A situação da vida proporciona para a personagem um problema específico que ela precisa resolver e sem o qual ela dramaticamente não existiria. Por exemplo: o Treplev de Tchecov, em A gaivota, está numa difícil situação no início da peça. Abandonado no campo pela mãe, uma atriz rica e famosa, e sem um tostão próprio, Treplev planeja surpreender todo mundo com seu talento, até agora insuspeito, como dramaturgo. Ele quer, de qualquer forma, superar sua situação. É nesta necessidade de transformá-la que nós encontramos o objetivo da personagem. A situação, com seu inerente problema humano, é o contexto do papel. E o primeiro contato do ator com a personagem é através do seu problema humano.
Esta relação entre a situação objetiva da personagem e a íntima necessidade pessoal de transformá-la, cria uma síntese dos lados objetivo e subjetivo da personagem. A ação torna visível a vida interna e cria uma base concreta para a experiência vivenciada. Esta síntese leva a uma visão artística do papel onde a expressão externa não está separada do conteúdo da experiência humana. Os objetivos a serem atingidos orientam a personagem através da peça. A cada instante a personagem reavalia sua situação perante seu objetivo e disso surge a necessidade de agir.

Armadilhas
Abordando a psicologia da personagem a partir da perspectiva das suas ações nos ajuda a não cair em várias armadilhas. O iniciante costuma identificar o lado psicológico (a vida interna) da personagem com as suas emoções. Ele rabisca no seu texto, ao lado das suas falas, as emoções da personagem: medo, tristeza, raiva etc. Na verdade, o número de emoções que podem ser descritas desta maneira é pouco. Ele pensa que, se pudesse sentir as emoções da personagem, iria, em conseqüência, viver a personagem.
Stanislavski, elaborador do influente sistema para o ator, se preocupou durante 40 anos com o problema da criação da experiência cênica verdadeira. Ele entendeu que as emoções não estão sujeitas à nossa vontade, e sim ao resultado de um processo de vida. Elas não podem ser atingidas diretamente. Numa tentativa de assalto, por exemplo, a vítima provavelmente sentiria um espécie de medo, mas isso não é tudo que determina a experiência da vítima. Neste tipo de situação há varias possibilidades de ação, incluindo fugir ou manter-se firme. Obviamente, é o que a pessoa faria nesta situação que determina sua experiência e revela melhor quem é. A ação, e não uma vaga sensação de medo, é o indicador mais preciso da personagem.
O texto rabiscado por um iniciante pode mostrar um outro erro. Ao lado das falas, ele escreve suas idéias, como tímido, humilde, maldoso. O que ele está anotando é a maneira que a personagem vai agir. Timidamente, humildemente, com maldade; uma abordagem “adverbial”. Mas, o que é que a personagem está fazendo? Qual é a sua ação? Ação é transitivo, é verbo! O advérbio qualifica um verbo; sem verbo, não tem sentido. É inútil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual a ação que vai fazer. Uma pessoa pode agir agressivamente na hora de pedir desculpas ou ameaçar “timidamente”, por exemplo. Saber como fazer (advérbio) antes de saber o que fazer (ação) é colocar a carroça em frente ao boi.

Ação
Por ação entendemos um ato que envolve o ser humano inteiro na tentativa de atingir um objetivo específico. Na ação orgânica o desejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo estão unidos. De fato, o homem inteiro participa da ação, por isso sua importância na criação da personagem, que, assim, concebemos em sua totalidade humana.
As percepções de um cego são diferentes das de uma pessoa que tem a visão; mas são precisas, e o cego se orienta pelo mundo através delas. O ser humano não percebe todos os fenômenos ao seu redor. Numa determinada situação, duas pessoas podem perceber duas coisas diferentes. Numa sala de aula, um aluno está atento à lição; o outro olha pela janela os pássaros voando. Assistindo ao mesmo discurso uma pessoa se interessa em alguns pontos, enquanto outra é atingida por outros pensamentos expressados pelo mesmo locutor. Agimos a partir de nossas percepções. Elas e nossas ações expressam quem somos nós.
Percebemos, avaliamos e depois agimos. O interior, que é invisível, se torna externo, visível e artístico através da ação. Entendendo que as emoções surgem durante o processo de ação, Vakhtangov[1] completou esta idéia de forma técnica: “A lógica dos pensamentos gera a lógica das ações, que gera a lógica das emoções”.

Diferenças
A personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Como indivíduos, somos capazes de empreender uma grande variedade de ações. A personagem ameaça e eu também posso ameaçar. A personagem consola; eu também posso consolar. Mas o que me diferencia de Hamlet, por exemplo, não são as ações simples, individualmente (ameaçar, consolar, reclamar, seduzir), o que é que estou fazendo concretamente a cada momento; mas a ação complexa - o conjunto destas ações simples que está dirigido a um objetivo único, com sua coerência, a sua lógica própria. É aqui que reconhecemos uma outra abordagem do lado psicológico da personagem. Trabalhar a coerência de apenas três ou quatro ações é começar uma pesquisa profunda da individualidade psicológica da personagem.
Talvez, por exemplo, na coerência da ação, a personagem ameace e logo depois peça desculpas. O ator pode ameaçar. Também ele pode pedir desculpas. Mas, com sua própria individualidade psicológica, ele dificilmente ameaçará e logo depois pedirá desculpas. Não é do feitio dele. Disso depreendemos, em forma de ação concreta, uma das diferenças entre o ator e a personagem. Trabalhando e experimentando esta coerência ou lógica de ações que não é dele, o ator começa a entrar no fluxo de vida da personagem.

Linha
Durante a peça, a personagem é capaz de realizar um número significante de ações que constituem uma linha contínua que atravessa todo o texto. A linha contínua de ações é a linha consecutiva de ações de uma personagem que o ator desenvolve a fim de reforçar a lógica e seqüência de seu comportamento no papel. Serve-lhe da mesma forma que uma partitura serve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem e perspectiva. Aqui reconhecemos um conceito básico de criação da personagem: ela existe a partir da sua lógica de ações. Criar a linha contínua de ações de uma personagem com sua lógica de ações não é um cálculo frio, mas envolve todo o ser humano que é o ator, com sua mente, alma e corpo juntos numa pesquisa psicofísica.

Caracterização
Como foi dito antes, a personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Diferencia-se no que diz respeito à lógica de ações, mas também no que diz respeito à maneira de agir. Além da linha contínua das ações da personagem com sua coerência própria, o ator também se preocupa com as características da personagem. A grosso modo: como ela se movimenta, fala, gesticula etc. A composição de hábitos de comportamento é chamada “caracterização”. Muitos atores encaram este trabalho como o descobrimento do gestual particular da personagem.
O problema da caracterização tem duas vertentes. O ser humano existe como indivíduo e também como integrante de um grupo maior. As classes sociais, as profissões, as faixas etárias etc. demonstram comportamento compartilhado que é imediatamente reconhecível. O comportamento humano também muda de país em país e de época em época.

Observação
Para criar as características do membro de um grupo, o ator depende desses dois fatores. Os atores de A gaivota, que retrata várias camadas da sociedade russa no fim do século XIX, precisam ser sensíveis ao fato de que suas personagens se apropriam dos padrões de comportamento de um outro país e uma outra época. Também, dentro desta sociedade, as pessoas estão separadas pelas classes e funções sociais - uma ampla pesquisa é necessária para qualquer peça ou personagem que fuja de nossa atual realidade.
Mas, precisamos ficar atentos ao problema de observações superficiais ou idéias baseadas numa ótica imprecisa ou preconceituosa. É verdade que os militares, por exemplo, compartilham características que os surfistas não demonstram. Mas é importante lembrar que nem todos os militares são iguais e há muitos que fogem totalmente de um padrão reconhecível.

Características
Dentro dos grupos, cada ser humano é um indivíduo com suas características próprias. O que é que determina as características individuais? E, lembre-se, por características não estamos falando de constatações vagas como “mesquinha, “ciumenta”, etc., e sim de modos de comportamento específicos. Para entender o que queremos descrever com a palavra “característica” é melhor não pensar em si mesmo, até porque muitas vezes ignoramos nossas próprias características.
Pensando em pessoas que conhecemos, é fácil perceber que elas demonstram peculiaridades interessantes. Um amigo tem um andar particular. Outro senta na cadeira com uma atitude desleixada e desdenhosa. Uma amiga fala de forma abrupta e aguda quase como uma galinha. O vizinho tem uma risada alta e contagiosa. A filha do colega ajeita o cabelo sem parar. Características como estas se somam dentro do indivíduo para criar um semblante marcante e imediatamente reconhecível. Mas é claro que estas manifestações externas são também relacionadas a realidades internas e profundas no que diz respeito a estas pessoas. Como é, então, que o ator começa a escolher e descobrir o estilo marcante da sua personagem através de suas características?

Particularidades
Não é de uma idéia vaga e geral que o ator deve partir e sim da elaboração das particularidades. A concepção total da personagem que já vem feita, leva o ator a desempenhar inevitavelmente um “jeitão”. Assim, surgem as prostitutas de palco que rodam a bolsa e mascam chiclete. Na descoberta de uma lógica de ação única e indispensável, o ator percebe que a personagem demonstra certas tendências de ação. Por exemplo: todos conhecem pessoas que se desculpam muito, até mesmo quando não são culpadas de nada. Estes hábitos, na vida, estão relacionados a certos modos de comportamento, ou seja, jeitos de executar as ações.
Recentemente, conheci uma pessoa gaga. Ou melhor, a pessoa falava naturalmente até surgir um problema de comunicação. Se fosse personagem, não ajudaria pensar “minha personagem é gaga”. Desse jeito o ator ia gaguejar indiscriminadamente. O gaguejo é na realidade uma característica relacionada com o processo de ação.
Treplev explode em quase todas as suas cenas. Mas ao invés de pensarmos que a personagem é apenas explosiva, devemos questionar quais são os acontecimentos que levam Treplev a perder a cabeça e o que precisaria fazer para se conter. Assim nós temos uma base para compor sua fisicalidade: o como fazer. A forma como Treplev explode e como realiza todas a suas ações agora se tornam pesquisa psicofísica do ator. Adaptando seu corpo à situação da personagem, à lógica de ações da personagem e conduzindo a composição tanto pela imaginação consciente do criador quanto pela intuição da personagem, o ator começa a paulatinamente compor o papel.

Composição
Neste ponto, o aluno descobre que a maneira de ele realizar uma ação pode ser diferente da do personagem. Hamlet ameaça e o ator também tem capacidade para ameaçar. O que distingue a personagem do ator é a forma como a ação é executada. Hamlet vai, inevitavelmente, ameaçar de maneira diferente da do ator. Digo “inevitavelmente” pelo conceito principal de caracterização, que afirma que todos os seres humanos são únicos.
Para caracterizar, o ator precisa recompor seu próprio comportamento. Para fazer isso sem cair na imitação fácil, é necessário transformar os componentes de ação interna e externa que são suscetíveis ao nosso controle: ação física, estado físico, tempo e ritmo, monólogo interior e imagens mentais (pensamentos) etc. Este processo se estende pelo longo período de ensaio e temporada - e até depois da temporada. Não é incomum que um ator, um ano depois da última apresentação, acorde uma bela manhã pensando como solucionar aquele momento que nunca deu certo!

Rejeição
É comum o ator iniciante rejeitar novos modos de agir - é mais cômodo depender da naturalidade e fazer a partir de si mesmo, ou ainda apelar para clichês. Compor meticulosamente a personagem, momento por momento, rejeitando dez tentativas para realizar uma idéia, é um trabalho árduo. Estranho dizer, mas quando não é impedido pela preguiça, o ator pode se travar pelo medo. A descoberta de uma ação psicofísica, única e indispensável da personagem, que é a possível conseqüência desta busca, implica na morte do ator e sua reencarnação dentro da personagem, e disso as pessoas têm medo.
O trabalho nos elementos de ação é avançado, requerendo um conhecimento do instrumento psicofísico e um paulatino desenvolvimento do mesmo. É fácil entender as grandes exigências feitas sobre o físico do ator, quando está compreendida a natureza psicofísica desta transformação. Quanto mais longe a personagem estiver do ator no que diz respeito a personalidade, condição de vida etc., mais o ator necessita de um instrumento cada vez mais disponível, flexível e expressivo. Além disso, as várias linguagens teatrais não realistas, do clássico ao contemporâneo, com suas personagens poetizadas, exigem do ator um instrumento preparado para harmonizar a força da vivência e a arte.

________________________________
David Herman é diretor e professor de interpretação

[1] Yevgeny Vakhtangov [1883 – 1922] Colaborador de Stanislavski e admirador de Meyerhold. Sua montagem experimental no Terceiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou de Gozzi's commedia dell'arte Princesa Turandot (1922) juntou um estilo grotesco com autenticidade na atuação e sugeriu rumos para Stanislavski no desenvolvimento de seu método.

___________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário