quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A platéia

A platéia é um conjunto de indivíduos; cada membro do público responde como indivíduo e também como membro do grupo. Os psicanalistas dizem-nos que o inconsciente do indivíduo reage ao nível inconsciente da representação, de forma que tanto o público quanto o ator sentem que “o fazemos juntos”. Ernst Kris (Psychoanalytic Explorations in Art. Allen & Unwin, 1953) nos apresenta outros dois processos: o público relaciona-se em três níveis dentro da experiência teatral - com o enredo, a experiência da ação e a personagem; sendo que o público também sintetiza o conteúdo, a intenção e a coerência da peça.
De certo modo, a presença de um grupo de espectadores é a diferença fundamental entre o teatro e qualquer outra forma de arte. A pintura, a escultura e outras artes exigem apenas uma pessoa como audiente e, ainda que possamos assistir a um concerto sinfônico como parte de um grande público, é igualmente possível apreciar esta forma de arte como se fôssemos o único ouvinte. No teatro, porém, a presença de um público é um pré-requisito. A platéia, de fato, participa na criação da forma final da arte; o escritor cria o texto, o ator representa, o diretor reúne as partes e a platéia reage. Sem a reação do público, a arte enquanto forma quase inexiste - como sabe qualquer ator que tenha representado para uma platéia vazia. O ator chega mesmo a definir a platéia como “receptiva”e “apática”. Assim, o teatro enquanto forma artística possui um imediatismo que está ausente em outras formas.
Essa formação de grupo, que é uma platéia, tem diversas características particulares. Allardyce Nicoll já declarou que uma platéia é uma unidade composta de elementos diversos, que possui, em geral, um nível intelectual inferior ao de seus membros individualmente, que não pode acompanhar um argumento lógico embora seja emocionalmente perspicaz, que pode ser arrebatada pelo faz-de-conta e ao mesmo tempo permanecer distanciada, embora não procure (como uma multidão ou povo) fazer desse faz-de-conta um motivo para a ação.

Conformismo
Como em todos os grupos primários, há, dentro do público, uma pressão no sentido da conformidade. Todos já tivemos a experiência de achar o começo de uma comédia decididamente maçante; contudo, lentamente, captamos as reações divertidas do resto do público, até que, eventualmente, começamos a desfrutar da encenação. É, também, característica da arte que a conformidade, em muitos casos, não seja permanente: uma outra experiência comum, como membro de uma platéia, é a de ser “levado” pela peça e pela encenação enquanto no teatro, e depois refletir que “talvez, apesar de tudo, não tenha sido assim tão bom”.
O indivíduo, dentro do grupo da platéia, portanto, não apenas tem uma atitude de distanciamento ao mesmo tempo em que é afetado pela experiência de grupo, como também pode reconsiderar e reavaliar a experiência posteriormente. O grau de conformismo de uma platéia varia com a sofisticação de seus membros: o music-hall do período eduardiano, com suas canções comunais e anedotário “elementar”, exigiu maior conformidade de seus membros que o programa do Royal Court Theatre, em Sloane Square, sob a regência de Vedrenne-Baker. A sofisticação (e, portanto, a conformidade) varia também de acordo com o período: o público da metade do século XX dificilmente aceitaria o melodrama da metade do século passado.

Jantar
A estrutura de uma platéia afeta a natureza da forma de arte. Os padrões sociais e o comportamento da comunidade podem alterar materialmente a estrutura do texto, a encenação e a interpretação. No começo do século XIX, quando o jantar era servido mais cedo, as peças eram escritas em cinco atos, contendo muitos momentos de espetaculares efeitos cênicos, e a noitada incluía vários outros entretenimentos, além da peça. No decorrer do século, a sociedade retardou seu horário de jantar: como as peças passaram a começar mais tarde, ficaram mais curtas e passaram a ser escritas em uma estrutura de três atos; e, como a ampliação do sistema de transporte público em Londres significou que mais gente da classe média poderia comparecer ao teatro, os hábitos alimentares passaram a ser mais influentes, na medida em que o século avançava. O acesso da classe média ao teatro significou um gosto mais apurado: assim, interpretação, encenação e cenários tornaram-se menos extravagantes e mais sofisticados em sua abordagem.
A natureza física do teatro influencia o relacionamento entre o público e a encenação - e, conseqüentemente, a natureza da forma de arte dramática. No último período medieval e durante a Renascença, as representações teatrais ocorriam ao ar livre, com a platéia disposta principalmente em três dos lados do palco: mesmo no teatro elisabetano, o ator representava entre os espectadores. Há, portanto, uma evolução natural do Ciclo dos Mistérios até Faustus, intermediada apenas pela forma interior do mesmo espaço pelos atores de interlúdios nos grandes salões. Mas, com o aparecimento de Inigo Jones, o palco em perspectiva, com seu esplendor cênico e sua platéia disposta dentro do edifício, criou um relacionamento diferente entre ator e público. Agora, o ator representava próximo a uma das extremidades da sala (não exatamente na extremidade) e diante de um cenário pintado, ao passo que Burbage havia tido atrás de si a arquitetura elisabetana e o público ao redor.
A terceira grande alteração na relação ator-público veio no século XIX com a introdução, primeiro, da iluminação a gás e, mais tarde, da eletricidade. Agora o auditório podia ficar às escuras, e a platéia olhava para dentro de uma janela onde as vidas de outros eram representadas. Não mais estavam partilhando, de fato, um convívio com os atores - eram espectadores, voyeurs. Foi desta maneira que mudou a natureza das próprias peças, na medida em que o relacionamento entre os atores e o público foi alterado pelo espaço teatral.

Exigência
Atualmente, a estrutura de nossa sociedade afeta materialmente a natureza do público, e, conseqüentemente, as peças e as encenações em nossos teatros. O grande teatro comunitário do final do século XIX já não mais existe; os teatros comunais - como os de Leiscester, Nottingham e Guildford - são menores e mais intimistas. O inglês ou o americano, com sua televisão à noite e seu carro que o leva para onde quiser nos fins de semana, exige muito mais de seu teatro local. A qualidade deve ser boa: os padrões de interpretação e encenação não podem parecer falsos para um membro da platéia que testemunhou milhares de horas de televisão; peças naturalistas sobre a vida cotidiana podem parecer mais naturalistas em seu aparelho na sala de estar que da poltrona da vigésima fila da platéia; e, na medida em que se pode comprar revistas de críticas por alguns centavos, a qualidade do texto dramático deve ser superior para que o público se satisfaça.
Naturalmente, os padrões do Wets End e da Broadway são bastante diferentes: são centros artísticos para milhões de pessoas. Mas, nas grandes cidades comuns - Birmingham ou Montreal, Nottingham ou Chicago - o teatro é ainda sustentado (ou não) pela comunidade, e os padrões da sociedade afetam materialmente a natureza do entretenimento teatral.
Essencialmente, o teatro é uma forma de arte vista no processo de formação. Três elementos - a peça, os atores e o público - são responsáveis por sua criação, e sem qualquer um desses três, esta forma de arte não pode existir.
*Artigo extraído do livro Jogo, Teatro e Pensamento, de Richard Courtney (Editora Perspectiva).

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