segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Microfones:
até quando?

Lionel Fischer

Ao longo dos últimos dez anos tenho exercido, entre outras atividades, a de crítico teatral - passei pelos jornais O Globo, Última Hora, revistas Visão e Manchete, e há sete anos estou na Tribuna da Imprensa. E como escrevo, em média, 90 críticas por ano, isto dá um total aproximado de 900 espetáculos. Ou seja: acredito estar suficientemente a par do que vem sendo exibido no Rio, aí incluíndo-se montagens de grupos iniciantes e de formandos - CAL, Uni-Rio etc. Pois bem: em meio a muitas surpresas - positivas e negativas -, nada tem me assombrado tanto como o indiscriminado uso de microfones, recurso antes só utilizado (e com razão, dada a natureza do espetáculo) quando se tratava de um musical.
Agora, no entanto, praticamente todas as produções que contam com uma verba mais significativa exibem os tais aparelhinhos, sob a seguinte alegação: usando um microfone, o ator não precisaria fazer nenhum esforço para ser ouvido, mesmo que atuando em salas gigantescas. Afora isso, o recurso permitiria ao intérprete valer-se de tons médios, baixos ou mesmo sussurrar (o que enriqueceria sua performance), ou simplesmente falar o quanto quisesse de costas para a platéia, enfurnado dentro de um armário, pendurado num andaime a não seis quantos metros do palco etc. Ou seja, a engenhoca eletrônica traria um duplo conforto: para quem atua e para quem assiste.

Fragilidade
Embora aparente estruturar-se em lógica cartesiana, o argumento é de uma fragilidade espantosa, posto que elimina uma das virtudes essenciais do ator, que é possuir uma voz suficientemente trabalhada que lhe permita ser ouvido em qualquer espaço. Se um ator só tem a si mesmo - corpo e voz - para exercer sua função, na medida em que todos utilizam microfones aquele estudou dicção, empostação, projeção vocal etc. vê seus méritos nivelados aos de um outro que, em condições normais, mesmo aos berros mal seria escutado a partir da terceira fila.
Ou seja: privilegia-se o medíocre, preguiçoso - ou o que venha a ser - em detrimento dos que se prepararam arduamente para o exercício de sua profissão. Nada exclui, portanto, a possibilidade de um dia chegarmos ao seguinte disparate: tendo que executar uma marca mais difícil do ponto de vista físico e incapaz de fazê-lo, o ator em questão seria substituído por um outro - digamos, um dublê - que faria o que ele não sabe fazer. Ou então, nesse momento, um vídeo seria projetado e o tal dublê cumpriria sua função - como, aliás, ocorre no cinema ou na TV, sempre que a cena envolve algum tipo de risco ou exige o desnudamento do intérprete, em especial em cenas de sexo implícito...

Mazelas
Mas, voltemos aos famigerados microfones. Além de conferirem ao que se ouve um tom monocórdio, intimista, televisivo - sim, pois qualquer tom de voz mais alto pode acarretar danos irremediáveis aos tímpanos dos espectadores - as engenhocas eletrônicas (ao menos no Brasil) possuem a singular propriedade de jamais funcinarem a contento - salvo em raríssimas exceções. Dentre as muitas mazelas frequentemente detectáveis constam as seguintes: microfonias variadas, chiados irritantes, estridências desagradabilíssimas, desligamentos imprevistos, ridículas sonoridades (tipo POC!) quando um ator esbarra no aparelhinho, afora eventuais interferências externas - não é muito raro se escutar uma conversa entre policiais, desde que uma viatura passe nas imediações do teatro.
E do ponto de vista estético, convenhamos: chega a ser bizarro ver aquela caixinha embutida nas costas dos atores, como se ali existisse uma lamentável deformação calosa! E quando sai um fio de uma orelha, que é provável que se conecte com a tal caixinha? Fico sempre com a sensação de que o intérprete padece de alguma deficiência auditiva, ou então que só escutará o texto de seus colegas com a orelha que lhe sobra...

Bicões
Em resumo: teatro é feito para quem estudou e jamais deixa de estudar, para os que têm consciência de que seus recursos expressivos não podem estar atrelados a nada que lhes seja exterior. Um ator bem-dotado (Epa!) vocalmente consegue nuances sonoras incompatíveis com microfones e se o teatro tem algo de essencial, que é o encontro do ator com o espectador, este tem que se dar sem intermediários dessa natureza, que só contribuem para banalizar a cena e permitir que ela seja tomada de assalto por bicões que nada têm a ver com ela. Quem não sabe falar ou possui voz pouco potente e expressiva, que vá estudar. Ou então, que tente uma carreira na televisão, onde pouco ou nada se exige atualmente a não ser altura, pele, olhos e cabelos circunscritos a determinados padrões.
(Artigo publicado na revista Cadernos de Teatro nº 160)

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