quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Enfrentando abismos

Entrevista com
Daniel Dantas

Houve um tempo, nem tão remoto assim, que a maior angústia
de um intérprete era ver-se impossibilitado de passar o Natal
e o reveillon em Nova Iorque. Hoje, a angústia é outra: não
posar para a revista Caras, seja em sua paradisíaca ilha ou no
soberbo castelo que possui na Europa - como se isso pudesse
significar prova inconteste de prestígio...
Pois bem: Daniel Dantas nunca nutriu qualquer obsessão de
contemplar Papai Noel na citada metrópole e muito menos
ilustrou as páginas da badalada publicação - ao menos nos
referidos santuários. E no entanto, trata-se de um dos melhores
atores de sua geração, com marcantes atuações no teatro, no
cinema e na televisão.
Nesta entrevista aos Cadernos de Teatro, o ator (47 anos de idade,
25 de profissão, flamengo doente e incansável organizador de
peladas, nas quais exerce com competência a função de lateral direito) aborda, entre outros temas, sua trajetória artística, sua primeira direção e um instigante projeto de montagem de Macbeth, de Shapespeare, com apenas cinco atores!

* * *

Cadernos de Teatro - Você é filho de um ator (Nelson Dantas), tem uma irmã que é atriz (Andréa Dantas) e sua falecida mãe (Ismênia) chegou a escrever alguns textos teatrais. Desde pequeno você já intuia que seguiria essa profissão?

Daniel Dantas - Não. Na verdade, ainda muito jovem, eu comecei a fazer teatro mais para me libertar de uma certa timidez. E também porque no Bennett, onde eu estudava, tinha umas meninas muito bonitinhas...

CT - Era a Lúcia Coelho quem dava aulas de teatro lá?

DD - Isso. Ela fundou o Teatro Amador Bennettense (TAB) e durante três anos eu participei de várias montagens. Foi lá que conheci pessoas que viriam a se profissionalizar mais tarde, como o ator Fábio Junqueira e a cenógrafa Cica Modesto.

CT - Mas por que você não estudou no Tablado, como quase todos da sua geração?

DD - Eu fui muito ao Tablado quando era criança e ali assisti a inúmeros espetáculos. Mas as circustâncias me levaram ao TAB e quando deixei o grupo resolvi dar um tempo, para ver se era isso mesmo que eu queria para a minha vida. Foi quando conheci o Hamilton, que tinha sido aluno da Maria Clara e estava pensando em criar um grupo, que acabou se tornando da maior importância para o teatro brasileiro.

CT - Você está falando do Hamilton Vaz Pereira e do Asdrúbal Trouxe o Trombone, pelo qual passaram nomes como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Gilda Guilhon, Evandro Mesquita, Perfeito Fortuna etc. Você protagonizou dois dos mais significativos trabalhos do grupo: o de estréia (O inspetor geral, de Gogol) e Ubu Rei, de Alfred Jarry. Como foi esse período na sua carreira?

DD - Foi incrível. Entre outras coisas, o Hamilton e a Regina conseguiam pensar o teatro como um todo, ao contrário do que acontecia comigo. Além disso, eles ambicionavam criar uma nova linguagem teatral, em total oposição à maneira tradicional de se fazer teatro.

CT - E como era o processo de criação?

DD - Era muito criativo...(risos) Na realidade, o grande barato do Hamilton era que ele te dava estímulos maravilhosos e depois conseguia selecionar o que de melhor você oferecia. E o texto era uma espécie de pretexto para as improvisações. Afora o fato de que tudo era sempre muito discutido.

CT - Fica então evidente que esse seu primeiro contato com o Hamilton foi muito estimulante. Mas depois veio o Ubu. Neste segundo espetáculo, você notou alguma diferença significativa na sua maneira de atuar ou de se envolver com o processo?

DD - Sem dúvida. No Inspetor, foi como se eu estivesse pisando pela primeira vez num continente desconhecido. Já na montagem seguinte, a minha compreensão daquela forma de fazer teatro era muito maior. E então eu comecei a entender e aproveitar muito mais as minhas qualidades que poderiam servir à montagem, me conscientizei como ator.

CT - Pouco depois, você se ligou ao Pessoal do Despertar, grupo dirigido por Paulo Reis e do qual também faziam parte jovens que brilhariam na profissão, como Maria Padilha, Zezé Polessa - com quem você foi casado -, Miguel Falabella, Antonio De Bonis e Henri Pagnoncelli, entre outros. Quais os espetáculos que você fez com esse grupo?

DD - Fiz o de estréia, O despertar da primavera, e depois A tempestade e O círculo de giz caucasiano.

CT - E o processo de criação era semelhante ao do Asdrúbal?

DD - Não. O Paulo tinha como uma de suas maiores prioridades não adulterar o texto. Ou seja: ele sustentava que o resultado final, por mais criativo que fosse - e normalmente era - tinha que manter total fidelidade aos conteúdos propostos pelo autor.

CT - Depois de tantos anos trabalhando em grupo, você iniciou uma trajetória “normal” de ator, ou seja, a de alguém que vive efetivamente de sua profissão, e que portanto nem sempre pode se dar ao luxo de selecionar o projeto em que irá se envolver. O que é que mudou nessa nova realidade?

DD - Tudo. No chamado teatro profissional, a tua margem de criação é menor - até por uma questão de tempo, já que tanto no Asdrúbal como no Despertar a gente ensaiava muitos meses, o que é inviável numa produção comercial. É também muito mais reduzido o teu controle sobre o produto final. Por outro lado, há um ganho: como você é chamado para se integrar num contexto claramente definido, isso eleva o teu grau de concentração, pois o que importa é que você seja um executante preciso daquilo que se espera de você.

CT - É mais ou menos o que ocorre no cinema e na televisão?

DD - É. Só que nesses dois veículos o teu controle sobre o produto final é ainda muito menor.

CT - Na TV, você já fez dezenas de trabalhos - novelas, especiais, miniséries etc. Destacaria algum?

DD - Pode ser dois? (Risos)

CT - Ou três, ou...

DD - Não, vamos ficar só com dois: no seriado Malu mulher, eu adorei minha participação em Uma coisa que não deu certo. E também fiquei muito feliz com o que consegui na novela O dono do mundo.

CT - E no cinema?

DD - Pequeno dicionário amoroso.

CT - Com 25 anos de carreira e atuando em tantas frentes, você já deve ter uma opinião sobre suas qualidades e defeitos como ator. Vamos às qualidades?

DD - Dentre as infinitas que possuo e que minha modéstia impede de citar a todas...(muitos risos)...Não, falando sério: acho que meu maior mérito como ator é minha capacidade de compreender o texto literariamente e conseguir imaginá-lo no espaço. E depois - não sempre, necessariamente - conseguir dizê-lo como deve ser dito, para que o espectador não fique com a menor dúvida sobre as idéias e sentimentos que meu personagem deseja transmitir.

CT - E quanto aos defeitos?

DD (Após longa pausa) - Não fica achando que eu estou demorando pra responder porque não percebo nenhuma falha em mim. (Risos) Estou apenas tentando selecionar a que mais me incomoda. (Nova e prolongada pausa) É o seguinte: gostaria de ter mais facilidade vocal. Mas sobretudo enfrentar com mais coragem os abismos emocionais de determinados personagens, ao invés de tentar driblá-los, como já fiz muitas vezes.

CT - Agora vamos ao seu primeiro trabalho de direção. Normalmente, um estreante na função procura se cercar de algumas garantias, como um texto conhecido e de inegável qualidade. No entanto, você optou por um poeta (o catalão Juan Brossa) que, mais do que escrever peças, propõe poemas visuais, como o que você encenou há um ano, Strep-tease. Por quê?

DD - Na verdade, esse projeto era muito mais da minha mulher (a atriz e bailarina Cristina Amadeo) e da Carol Aguiar. Eu fui entrando de mansinho, assistindo a alguns ensaios, dando sugestões e quando dei por mim, estava dirigindo. E fiquei fascinado, não apenas por dirigir pela primeira vez, mas sobretudo porque o Brossa lida com um universo muito instigante, em que há sempre uma estranheza na relação entre os objetos, uma permanente inquietação no que se refere à linguagem e aos significados.

CT - E você gostou do resultado?

DD - Sim. Sobretudo porque eu acho que consegui ser fiel ao autor sem ser subserviente. E visualmente, o espetáculo era muito bonito.

CT - E o projeto Macbeth?

DD - Ele nasceu com o Cláudio Torres Gonzaga, que defendeu há uns seis anos, na Uni-Rio, uma tese de mestrado chamada Uma charada para Macbeth. Afora a tese em si, ele criou uma versão surpreendente de Macbeth com apenas três atores!? E agora nós estamos pensando em fazer com cinco.

CT - Você fará o protagonista?

DD - Sim. E os outros quatro atores vão se revesar nos demais papéis.

CT - O elenco já está formado?

DD - Não sei se o definitivo, mas eu, a Cris (Cristina Amadeo), o Isaac Bernat, o Antonio Gonzales e a Dora Pellegrino - além do Cláudio, naturalmente - estamos nos encontrando toda segunda-feira lá em casa para ler e discutir a peça. Além de pensar na inevitável captação de recursos e num espaço disponível.

CT - É sabido que o papel de Macbeth dificilmente é bem realizado, até mesmo por atores consagrados. Algum receio especial?

DD - Todos e mais alguns. Mas desta vez eu estou disposto a peitar todos os abismos que surgirem.
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Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 167, foi concedida a Lionel Fischer em março de 2002.

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