sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Cricot 2:
Um dos grupos teatrais

mais extraordinários
do século XX


Fundado pelo polonês Tadeusz Kantor em 1955, o grupo Cricot 2 é referência obrigatória sempre que se pensa no teatro de vanguarda. Visando homenagear um dos maiores criadores cênicos de todos os tempos, apresentamos neste artigo as premissas que deram origem ao grupo, segundo seu criador, assim como a análise de um de seus mais brilhantes e polêmicos espetáculos, A classe morta, que tive o privilégio de assistir em Paris, em 1977, no sexto Festival de Outono. Ao regressar ao Brasil e contar a Maria Clara Machado o deslumbramento que a montagem me despertara, ela me perguntou se não gostaria de escrever um artigo para os Cadernos de Teatro falando do Festival e, em especial, da montagem que mais me impressionara. Tal convite, é óbvio, foi prontamente aceito. E o artigo foi publicado no nº 75 dos Cadernos. Como esta edição está esgotada, aqui reproduzimos parte do artigo. E após o texto de Kantor, seguem as impressões de um jovem de 27 anos - é curioso, mas já tive 27 anos - sobre algo que o marcou para sempre, assim como dados complementares sobre Tadeuz Kantor e o grupo Cricot 2.

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Cricot 2,
segundo Tadeuz Kantor


Nascimento
A idéia de um teatro de vanguarda surgiu em decorrência de encontros entre pintores de tendências extremas, jovens poetas e atores. Mas, ao contrário do que entendeu naquela época, o Cricot 2 não era um grupo unicamente em busca de valores plásticos, mas um teatro de atores desejosos de encontrar, através do contato com pintores e poetas de vanguarda, uma renovação total dos processos do jogo cênico.
O Cricot 2 propôs a idéia de um teatro que, enquanto obra de arte, só reconhece suas próprias leis, opondo-se radicalmente a um teatro submisso à literatura, que se contenta em reproduzir estupidamente a realidade, que despreza a liberdade criadora e a força das formas de expressão e de ação. O Cricot 2 sempre objetivou materializar as possibilidades da liberdade na arte, assumir o o risco que lhe é inerente, assim como valorizar seu espírito de aventura, o gosto pelo absurdo e sua abertura ao impossível.

Mudança
Acredito que o Cricot 2 tenha mudado a relação entre a cena e o público. Um público instalado em mesas de um bar, ouvindo jazz ou dançando constituem uma realidade autêntica, viva, em oposição a um auditório passivo, neutro, aprisionado nas poltronas dos teatros oficiais. Assim, criamos a sala do Cricot 2 pensando em transformá-la em um prolongamento da rua.
Além disso, sempre buscamos nos servir de meios de expressão bem fortes, provocantes e contestadores. A metamorfose do ator, por exemplo, ao invés de ser camuflada, é exibida sem nenhum disfarce. E também trabalhamos com maquiagem exagerada, com formas de expressão típicas do circo, subvertemos propositadamente determinadas situações, valorizamos o escândalo, a surpresa, o choque, fazemos associações que contrariam o bom senso, trabalhamos as palavras mediante pronúncias afetadas e artificiais.

Insólito
Ao criarmos situações cênicas insólitas, não isentas de um certo disparate, contrariamos propositadamente a lógica da vida. E isso para nós é essencial. Ao representarmos em meio ao público, ao redor dele, , procuramos retirá-lo de sua inércia e passividade. Mas é claro que tal postura às vezes provoca reações enfurecidas, pois muitos espectadores saem de nossos espetáculos com a sensação de terem assistido a algo decadente, caótico e escandaloso.

Desespero
Em 1955, a situação dos teatros era desesperadora. Há muito tempo nenhuma manifestação de vanguarda ocorria em cena. Todo radicalismo estava como que interditado, soava depreciativo, graças sobretudo aos imbecis que, solidamente instalados em sua vidinha burguesa, procuravam extrair proveito da arte em função de seus próprios interesses. Esses imbecis tinham, como ainda têm, uma frase pronta para tentar invalidar tudo que é novo: “Isso já foi feito, não possui nenhuma novidade”.
E valendo-se de tal assertiva, tentavam persuadir a todos de que detinham o monopólio da verdade, ou seja, da verdade da arte. E faziam alarde de seu suposto conhecimento da matéria, de seu bom gosto, de seu saber sublime. São essas pessoas que fazem com que o artista - o verdadeiro artista - seja desprezado, colocado sob suspeita e, se possível, exterminado.

Reação
Mas a arte, a verdadeira arte, acaba sempre se impondo aos que pretendem banalizá-la, confiná-la aos estreitos limites de determinadas convenções. E o Cricot 2 surgiu, efetivamente, como uma reação à mentalidade que imperava na Polônia em 1955. Neste sentido, e sem nenhuma ironia, somos profundamente gratos a todos aqueles que geraram em nós não apenas a revolta, mas também a energia vital que nos possibilitou criar uma estética teatral radicalmente oposta àquela tida como intocável e imutável.

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A classe morta

Os personagens de A classe morta se desintegram e se transformam a cada momento. Não nos são oferecidos mais do que alguns fragmentos e qualquer tentativa de uni-los coerentemente para compor personagens palpáveis torna-se desastrosa. Eles nos dão a sensação de pertencerem não a uma, mas a várias peças. Algumas poucas paixões e sonhos, restos de uma infância longínqua, e é tudo.
Os atores de A classe morta representam seus papéis sem lhes atribuir grande importância. Fazem-no como que por automatismo, como se seguissem o curso de um velho hábito. Dão mesmo a impressão de que seus gestos não lhes pertencem e o demonstram através de um distanciamento ostensivo. Com a maior naturalidade e sem escrúpulos, eles abandonam seus papéis, como se fossem incapazes de conservá-los. Diante de tal quadro, só nos restam conjecturas e pressentimentos. E para que o encantamento e a emoção nos envolvam, é preciso aceitar as regras do jogo. Estranhas, sem dúvida, mas irresistivelmente fascinantes.
Os atores vestem-se de negro e a palidez de seus rostos nos leva a crer que estejam todos mortos. Imóveis em seus bancos de escola, elevam lentamente os braços como que pedindo autorização a um mestre imaginário. Retiram-se submissos, para retornarem em seguida cada qual com seu manequim, figuras de cera em idade adolescente, com os quais procuram demonstrar que um dia foram jovens. E que sonharam. E que tiveram ilusões. Mas os adolescentes, igualmente vestidos de negro e trazendo consigo a palidez da morte, nos colocam sérias dúvidas quanto à mocidade longínqua, como se também ela não houvesse existido, como se tudo fosse A MORTE.
O impacto causado pela entrada dos atores com seus manequins é assustador. Como se estivessem sob o peso de alguma acusação gravíssima, eles procuram inocentar-se conquistando seus juízes, o público. Esse processo de sedução é feito por meio de evoluções cênicas, através das quais os atores e bonecos se confundem. Ao observá-los, nesse momento, não conseguimos enquadrá-los em nenhuma categoria, não nos sendo permitido sequer definir com clareza o lugar em que nos encontramos. A imaginação é convidada a ultrapassar todos os limites e é preciso fazê-lo. Afinal, que importância pode ter definir categorias? Amenizar o nosso pânico, talvez, essa insegurança assustadora diante desse agrupamento de cadáveres que, contrariando as normais mais elementares do bom senso, vêm realizar orgias sobre a campa das próprias sepulturas. Como lidar com eles? Que fazer?
Só nos restam conjecturas e pressentimentos. E contrastes. Como o conseguido por meio da nostálgica melodia de uma valsa, que acentua, durante quase toda a peça, o abismo terrível que separa a realidade dos personagens de suas tentativas em demonstrar o contrário. É a tragédia do homem materializada pela cena. Do homem incapaz de se reconhecer como falho, sempre em busca de uma perfeição que não se encaixa dentro de seus limites. É a tragédia do homem que, para sobreviver e ser aceito, representa papéis que não lhe convém, colando ao rosto máscaras que não aderem e que deslizam, subitamente, deixando à mostra a verdadeira face. É a tragédia do homem em busca de seus deuses e mitos, cada qual arrastando o respectivo manequim.
A língua falada era o polonês, mas a linguagem, a teatral. Através dela e graças a ela, pudemos percorrer um longo caminho, que continha toda a felicidade e todo o sofrimento. Como os personagens, nós também nos sentimos personagens ambíguos. Feitos de cera e encharcados de morte. Como se também fôssemos portadores de um tumor cerebral.

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Cricot 2
Lionel Fischer

Tadeusz Kantor nasceu no pequeno burgo de Wielopole, na Polônia, em 1915. Em Tarnow, onde realizou seus estudos secundários, Kantor começou a se interessar por pintura. Extremamente influenciado pelos simbolistas Wyspianski e Matchevski, desenha, pinta e aos poucos seus interesses vão se afastando das matérias obrigatórias da escola e um desejo começa a ganhar contornos definidos: o de tornar-se pintor. Ao deixar o Liceu, toma o rumo de Cracóvia, cuja Escola de Belas Artes freqüenta durante cinco anos, de 1934 à 1939. Paralelamente à pintura, estuda cenografia com um dos maiores artistas poloneses do século, o cenógrafo Karol Frycz.
Em 1942, a Polônia se encontra esmagada pelo terror nazista. A vida cultural e as manifestações artísticas são proibidas e as poucas obras que conseguem chegar até o público, desfiguradas pela irracionalidade dos agressores, perdem todo o significado e se tornam inúteis. É então que Kantor, juntamente com um grupo de jovens cujas idades variavam entre 18 e 25 anos, a maioria composta de pintores, funda o Teatro Experimental Clandestino.
A primeira montagem, Balladyna, de Slowacki, é estreada na sala de um pequeno apartamento, para uma platéia de 40 pessoas. Treze anos mais tarde, em 1955, como conseqüência dessa primeira tentativa, surge o Teatro Cricot 2. Durante seus 35 anos de vida, sempre sob a orientação de Kantor, o Cricot 2 passou por diversas fases, todas elas intimamente ligadas à incessante busca de seu diretor no sentido de fazer com que sua arte não se tornasse estática, negando-se a assumir o papel de parasita de suas próprias conquistas.
Foi assim que, dispondo-se cotidianamente a enfrentar o desconhecido, a adormecer a memória embriagadora de glórias recentes e a arriscar um salto rumo ao nada na busca de um sempre novo renascer artístico, que o Cricot 2 percorreu uma das mais fascinantes e ricas trajetórias de que se tem notícia. Essa longa caminhada compreende o Teatro Informal (1961), o Teatro Zero (1963), o Teatro Happening (1967), o Teatro Impossível (1962) e finalmente o Teatro da Morte, última etapa do Cricot 2, marcada pela realização do espetáculo A classe morta, que teve como ponto de partida a peça O tumor cerebral, de Witkiewicz.


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O presente artigo foi extraído do livro Le théâtre de la mort (Editions L’Age d’Homme 10, Metrópole, Lausanne, 1977), que reúne escritos do encenador polonês selecionados por Denis Bablet. Lionel Fischer assina a tradução, assim como a avaliação do espetáculo A classe morta e as informações complementares sobre o grupo Cricot 2.

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