quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Chutes na cara do
espectador apático

Dario Fo


Há um tema que desejo desenvolver, seja do ponto de vista do ator, do autor, do diretor, seja – desculpem-me – do ponto de vista do cenógrafo, aliás a única profissão da qual possuo um título acadêmico. O problema está vinculado ao relacionamento com o público, ou seja, com o desfrutador. Durante os debates no famigerado simpósio de Stresa, recordo-me que o diretor de um teatro de muito prestígio, o Staten Theater de Hamburgo, ergueu-se e sentenciou: “O verdadeiro rei é o público”. A frase provocou um grande efeito.
Sim, o público é importante, aliás é fundamental para o desenvolvimento e crescimento de uma obra, pois além de fazer o serviço de verificação e controle, oferece uma preciosa colaboração. Entretanto, todo o cuidado é pouco para não nos tornarmos bajuladores desse mesmo público. Com freqüência, ele revela-se uma bela droga. Encontra-se presente na sala de espetáculo sem brio, passivo e aparvalhado. Eventualmente, mostra-se pouco ou nada propenso ao novo; podemos até mesmo descobrir estarmos representando para uma massa de reacionários. Ele também pode ser freqüentemente adulador, pronto a desmanchar-se em salamaleques. Vem ao teatro estupidamente condicionado ou desconfiado e engole toda a sorte de modismos alucinados. Possui algumas idéias fixas, que dificilmente conseguimos mudar com apenas um espetáculo. Mesmo sendo constituído por diferentes individualidades, muitas vezes o público se amalgama e impõe o próprio ritmo autônomo.

Método
Como podemos individualizar o caráter do público? Pois bem, eu tenho um certo método. Tive oportunidade de experimentá-lo e de sofrê-lo na pele. Para começo de conversa, sou privilegiado: como autor desfruto da sorte de ser também ator, e tenho ao meu lado uma mulher, uma atriz – não quero contar vantagem – de qualidade superior, extra-forte! Aprendemos, juntos, a usar certos elementos mecânicos, ou seja, realizamos e improvisamos sempre um prólogo para iniciar nossos espetáculos (retomamos esse bom hábito do teatro “à italiana de antigamente”), como método de sondagem, aproximação e ligação. Há também um prólogo às avessas, com o qual, entre outras coisas, podemos ajudar o público a encontrar os assentos, lhe damos algumas alfinetadas, o deixamos ou não à vontade, propositadamente.
Darei um exemplo: um espectador começa a passear impávido pelos corredores da platéia em busca de lugares vazios. Inicia-se uma discussão. Nesse momento, eu interrompo o que estou dizendo e o interpelo: “Desculpe, qual é o problema? Sim, entendi...Você quer se sentar numa poltrona ocupada por um casaco...E se eu lhe disser que ela está reservada para uma senhora que momentaneamente sentiu uma necessidade urgente? Como fica? Não, eu não conhecia esta regra: ‘Quem sente vontade de fazer xixi, não pode se mexer, que o faça aqui. E quem tem vontade de defecar, perde a vez, não encontra mais o seu lugar”’. Nesse momento, todos irrompem numa gargalhada, e eu retorno ao prólogo.

Relaxamento
Em suma, a coisa funciona do seguinte modo: ficamos de olho em certos espectadores vistosos, que se destacam na platéia. Por meio deles, tentamos entender com que tipo de público vamos lidar. Nossa preocupação maior é deixar o espectador relaxado. Borrifamos jatos de uma espécie de ácido reagente perfumado a jasmim, criando uma atmosfera tal que, se o espectador quiser, poderá até mesmo descalçar os sapatos para desinchar os pés.
O problema é conseguirmos induzir o espectador a se familiarizar e amar o espaço onde iremos representar. Muitas vezes, nossa atuação começa mais arrastada, freamos certas passagens, ou, pelo contrário, as aceleramos, porque sentimos estar diante de um público que quer ser agredido, um animal masoquista. Às vezes, somos forçados a lançar-lhe na cara as falas, jogando-as fora – nesse caso, não nos interessa que elas sejam absorvidas completamente. Obrigamos o espectador a esticar o pescoço para nos ouvir, se ele quiser entender o que estamos dizendo. Como histriões bastardos, abaixamos conscientemente o tom de voz e depois lhe gritamos na cara, subitamente.

Socos e afagos
O teatro é uma luta de socos e afagos, sem ringue, em que o juiz foi vendado e, para vencer, tudo é válido. Truques e expedientes infames não são incomuns. Os recursos citados são alguns dos tantos que usamos para entender e captar o humor do público, para tentar enquadrá-lo, dentro de um ritmo que é nosso, em uma dimensão em que seja possível controlá-lo, geri-lo, tê-lo em nosso completo poder: “É agora, é agora! Todo o poder a quem faz os truques, joga sujo e labora seu público!”
Tal método, que expusemos carregando de um certo grotesco, obriga-nos posteriormente, como escritores e diretores, a adaptar o texto a determinadas situações e conformá-lo às necessidades mais vivas que o público pede e propõe. Por meio desse método de sondagem preliminar, com o relativo engajamento do público, consegui muitas vezes descobrir os erros, os desequilíbrios até graves do texto, as regiões mortas ou prolixas, pouco claras do espetáculo no seu todo. Desprovido dessas extraordinárias possibilidades de verificação, um autor normal corre o risco inevitável de se ver arrastado na direção de um desastre irreparável. E, ao final, derrotado, estaria obrigado a tirar o espetáculo de cartaz e voltar para sua casa maldizendo aquela malta de atores caninos que lhe tinham massacrado a obra: Uma obra-prima atirada na privada!”
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O presente artigo foi extraído do livro Manual mínimo do ator, organizado por Franca Rame, Editora Senac, São Paulo, tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Azlak. Maiores informações sobre o autor podem ser encontradas na coluna Personalidades.

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