quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

As diretrizes do manipulador de afetos


ENTREVISTA com BOSCO BRASIL



Os espectadores cariocas talvez só tenham entrado em contato com o dramaturgo Bosco Brasil a partir do sucesso alcançado pela montagem de Ariela Goldman para seu texto Novas diretrizes em tempos de paz. Mas Bosco já trilhou longa trajetória, a maior parte dela em São Paulo, onde seu nome circula na mídia desde a década de 80. Nascido em Sorocaba, em 1960, ele logo se mudou com a numerosa família (são seis irmãos, ao todo) para a capital paulista. O contato com o teatro não demorou muito, surgindo nas suas peregrinações pela biblioteca, a parte mais fresca da casa. Anos depois, escolheu no jornal, utilizando como critério a simples ordem alfabética, a primeira peça que iria assistir. A escolha foi Antígona, montagem de formandos da Escola de Arte Dramática (EAD), o mesmo texto que marcaria seu exame de aptidão para o curso de Artes Cênicas na ECA. Tendo iniciado carreira como ator, Bosco Brasil acabou se notabilizando como autor, transitando entre o teatro e a televisão. Até hoje, assinou cerca de 40 textos.

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Cadernos de Teatro - Como foi o seu primeiro contato com o teatro?

Bosco Brasil - Meu primeiro contato se deu através do texto. Meu pai era de 1910. Portanto, um intelectual do século XIX. Chegou a escrever uma peça, A retirada de Laguna. A biblioteca ficava numa parte muito fresca da casa, o melhor lugar nos dias de calor. O teatro permaneceu como um enigma para mim até os 13 anos.

CT - Qual foi a primeira peça que você assistiu?

BB - Foi Antígona, numa montagem de formatura da Escola de Arte Dramática (EAD). Fui assistir com alguns amigos e escolhemos o espetáculo pela ordem alfabética. Comecei a me dedicar ao teatro freqüentando a Biblioteca do Museu Lasar Segall, composta pelo acervo de Anatol Rosenfeld.

CT - E onde você adquiriu prática teatral?

BB - Fui aluno de Berta Zemel e Wolney de Assis. Minha intenção inicial era estudar edição em super-8 e acabei descobrindo o curso de interpretação deles. Berta tinha apostilas do Eugenio Kusnet baseadas em anotações sobre Stanislávski.

CT - Em que momento você abandonou a trajetória de ator?

BB - Ainda gosto muito de trabalhar como ator, apesar de há anos estar distante desta função. Abandonei quando comecei a trabalhar em televisão.

CT - Fale um pouco sobre seu trabalho como ator.

BB - Fiz três peças de Pirandello: O homem com a flor na boca, Ce Ce e Vestir os nus. Era um período muito agitado. Havia pressão por um engajamento. Fiz teatro comunitário, em fábricas.

CT - Você tem formação universitária?

BB - Minha primeira opção universitária foi Ciências Sociais. Cursei até o terceiro ano. Até que escrevi uma cena para um trabalho, ao invés de uma monografia. Decidi, então, fazer Artes Cênicas, na ECA. O exame de aptidão foi justamente Antígona.

CT - Como começou a sua carreira profissional de dramaturgo?

BB - Comecei como profissional da escrita no rádio, a expressão artística que, para mim, tem mais potencialidade poética. Fazia rádio-novela, gravada em São Paulo mas distribuída para emissoras do Brasil todo. As temáticas esquisitas, as mais fantasiosas, ficavam para mim.

CT - E a escrita para teatro?

BB - Minha primeira peça que recebeu crítica em jornal foi Jornal das Sombras, em 1984, junção de dois textos de minha autoria: A hora marcada e O homem do soco.

CT - Novas diretrizes em tempos de paz foi sua primeira peça montada no Rio de Janeiro? A que você atribui o sucesso do texto?

BB - Foi. Acho que Rio e São Paulo vivem de costas um para o outro. O segredo da peça é a simplicidade, o mais difícil de se conseguir. Fiz um texto direto, que falava emocionalmente à platéia. No fundo, esta é a forma como consigo me comunicar porque, para mim, a dramaturgia é uma manipulação de afetos. Além disso, ainda sou um ator escrevendo. Então, pensei: que tipo de diretrizes estabelecia para mim como autor? Queria, portanto, que o texto resultasse simples o suficiente para ser feito por atores sem que nada mais fosse necessário. Um teatro que se voltasse para certas essências.

CT - Já Redentor não obteve a mesma repercussão junto ao público e a crítica. Por quê?

BB - Minhas relações com o teatro são sempre passionais. Na época de Redentor estava me separando de Ariela Goldman. Era um texto de encomenda para um grupo de atores jovens, sem um tema pré-determinado. Minha obra é pendular. Gosto de introduzir elementos épicos. Redentor trazia à tona uma outra faceta, diferente da de Novas Diretrizes. Mas o momento pessoal pelo qual passava interferiu na obra. Não consegui estabelecer diretrizes. Originalmente era para ser um monólogo e, no desmembrar do ponto de partida, houve uma fragmentação excessiva do que pretendia dizer. Não tive tempo para enxergar estes problemas. Os elementos épicos não foram bem explicitados dramaturgicamente. Foi um trabalho que saiu em processo.

CT - Você já tem uma trajetória longa na televisão, não?

BB - Trabalhei durante 15 anos na TV Globo, fazendo teledramaturgia como colaborador. Participei dos processos de criação de novelas como Anjo mau (2ª versão), Torre de Babel e As filhas da mãe, firmando parcerias com Maria Adelaide Amaral e Silvio de Abreu.

CT - Como você ingressou na televisão?

BB - Meu primeiro sucesso no teatro, em São Paulo, foi Budro. Lauro Cesar Muniz e Maria Adelaide Amaral foram assistir. Na época, ele estava vendendo os direitos de adaptação de As pupilas do senhor reitor para o SBT. Lauro Cesar não poderia realizar este trabalho porque estava na Globo e me convidou para fazer. Até então, eu tinha trabalhado no Teletema, ao lado de Walter George Durst, com quem aprendi muito. Agora, estou na Rede Record integrando a equipe de colaboração de Essas mulheres, novela de Marcílio Moraes e Rosane Lima.

CT - Como você analisa a televisão atualmente?

BB - Acho que a televisão hoje é muito pior do que a de antigamente porque o espaço para o risco é nulo. A TV dá muito dinheiro, ainda que a quantidade de espectadores tenha diminuído. Mas não existe a visão de que o risco pode alimentar um sucesso no futuro. É mais grave ainda a ausência de risco em emissoras que não estão no topo. Elas podem não subir justamente porque não arriscam. O espaço para as experiências está concentrado nas minisséries. A telenovela, meio de expressão dramático genuinamente brasileiro, sofre mais o processo que vivemos. Economicamente, é a galinha dos ovos de ouro. A partir do capítulo 40, a novela está paga. Dá dinheiro, merchandising, é vendida para o Brasil todo. Essas mulheres custou 18 milhões.

CT - Você gosta do trabalho em TV?

BB - Gosto. O grande barato de escrever para TV é o da formação de um ego genérico, coletivo. Há um momento em que você não sabe quem escreveu o quê. Dificilmente se trabalha menos de oito horas por dia. A grande dor está em como conduzir uma história.

CT - Segundo Peter Brook, o teatro é “a arte do encontro”. No entanto, de Novas diretrizes em tempos de paz para cá, esta cumplicidade palco-platéia não se repetiu, ao menos com a mesma intensidade. Antes o teatro era um acontecimento, mas agora parece caminhar para uma banalização cada vez maior.

BB - Estamos enfrentando um problema. O teatro é uma zona em que o eu e o tu se encontram. Mas o teatro permeado pelo afeto vem sendo negligenciado. São Paulo tem um movimento mais vigoroso de produção. Novas diretrizes era um entretenimento propondo reflexão.

CT - O que você aconselharia para quem está começando a escrever para teatro?

BB - Todo mundo chega com a sensação de que sempre ocultaram o segredo da escrita para teatro. Eficiência dramatúrgica é adquirida, mas a teatral vem antes. Aconselho que se busque primeiro o teatral ao invés do dramatúrgico, ainda que seja importante conhecer dramaturgia. O gol é conseqüência de uma construção e para fazê-lo é preciso habilidade, leveza e precisão.

CT - Há algo de misterioso no acerto teatral?

BB - O teatro é um fenômeno inexplicável, fruto de uma confluência de desejos, de afetos. O que existe de teatral na vida? É um entendimento decisivo para quem quer amadurecer. Criamos vida, não imitamos.

CT - O que mais é importante para o dramaturgo?

BB - O autor precisa escrever para teatro e não fazer literatura. No início do terceiro ato de O inimigo do povo, de Ibsen, há pedras espalhadas pela casa. A entrada teatral das pedras no espaço cênico é de uma força maravilhosa. O palco é um suporte, assim como a tela para o pintor. Na pintura você consegue “enxergar” o gesto do pintor. No teatro é a mesma coisa. Teatro é ritmo e música. E preenchimento do silêncio. E ausência de silêncio, no caso da longa pausa de John Cage. Além disso, há três importantes indicações de rubricas: relativa ao tempo, que pede reflexão rítmica, ao silêncio, que está explicada em si mesma, e à pausa, que traz a incidência do narrador.

CT - Como vem se dando sua relação com os diretores que transpõem suas obras para o palco?

BB - Nunca tive problemas com os diretores. Sei o que é o dia-a-dia do teatro. Fui diretor artístico do Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça Roosevelt. Em relação às minhas obras, Cibele Forjaz dirigiu O acidente e foi maravilhosa. Agora Ricardo Kosovski está à frente da montagem de Abelardo e Berilo (intitulado, no espetáculo paulistano, como Os coveiros).

CT - Há uma polêmica bastante contemporânea relativa à transposição teatral de obras literárias. Como você analisa esta questão?

BB - A assimilação do material literário deve ser feita pelo dramaturgo. Já me deparei com bons resultados, mas, em geral, não gosto. Na maior parte das vezes que alguém me procurava para adaptar romances e obras poéticas eu perguntava sobre o que a pessoa estava realmente querendo dizer e encontrava uma peça que falava sobre aquilo. Existe um desconhecimento da riqueza dramática. As pessoas não costumam ler teatro hoje em dia.
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Esta entrevista, publicada nos Cadernos de Teatro nº 174, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker, cabendo a este último a redação final.


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