terça-feira, 13 de janeiro de 2009

“Gloriosa”

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Montagem imperdível inaugura Teatro Fashion Mall


Lionel Fischer


Dentre os muitos temas abordados por Peter Quilter em “Gloriosa”, talvez o mais significativo diga respeito ao desejo. A protagonista, a norte-americana Florence Foster Jenkins (1868-1944), filha de um banqueiro bem-sucedido, começou a fazer aulas de canto ainda criança. No entanto, ao perceber que ela não tinha a menor vocação para o ofício, seu pai recusou-se a continuar pagando as aulas. O normal seria, pelo menos naquela época, que Florence abdicasse de seu desejo e seguisse o previsível futuro que lhe estaria destinado. Mas aos 17 anos ela fugiu de casa e insistiu em continuar estudando canto lírico, acabando por tornar-se uma celebridade. Tal celebridade, no entanto, não se deu em face de seu talento, mas de suas excentricidades e sobretudo de sua total incapacidade como cantora. Ela se acreditava talentosa e afinada, mas na verdade era uma catástrofe.
Eis, em resumo, o enredo de “Gloriosa”, peça que inaugura o belíssimo Teatro Fashion Mall. Marisa Murray assina a tradução, cabendo a Cláudio Botelho a adaptação e direção musical, estando a direção a cargo de Charles Möeller. Na pele da protagonista, Marília Pêra divide a cena com Guida Vianna – Maria, a empregada; Dorothy, a amiga; e Verinda, a mulher que humilha – e Eduardo Galvão, que interpreta o pianista Cosme McMoon. O pianista Silas Barbosa toca na coxia o que o ator dubla em cena.
Como dissemos no parágrafo inicial, talvez o tema mais importante de “Gloriosa” seja o desejo. Mesmo que muitas vezes ridicularizada, Florence sempre seguia em frente, o que muitos chegaram a considerar como a materialização não de mera teimosia, mas de evidente sintoma de loucura – ela alegava que seu “ouvido interno” lhe garantia que cantava de forma irretocável, não percebendo a dicotomia quando cantava de fato. Pois bem: e que importância teria se ela padecesse de algum distúrbio psíquico mais grave? O que importa destacar é a tenacidade de uma mulher que jamais abdicou do seu desejo, que priorizou seu impulso essencial independentemente dos “ouvidos apurados” daqueles que lotavam seus recitais. E se o faziam, podemos supor que a vontade de se divertir “com uma louca” fosse a causa principal. Mas nada nos impede de também supor que uma monumental inveja, ainda que latente, habitava o coração de todos que a assistiam, pois certamente a maioria não tinha um décimo da coragem de Florence para ao menos tentar viabilizar seus projetos, optando por conformar-se em assumir papéis convencionais em uma sociedade puritana e repressora.
Quanto ao espetáculo, Charles Möeller impõe à cena uma dinâmica que, sabiamente, dispensa inúteis mirabolâncias formais e investe naquilo que realmente importa: a relação que se estabelece entre os ótimos personagens. Mas cumpre registrar a criatividade de suas marcações, a precisão rítmica e sobretudo a capacidade do encenador de ajudar os atores a criarem performances inesquecíveis. A começar pela de Marília Pêra.
Ao longo desses 20 anos de exercício da crítica teatral, assistimos inúmeros espetáculos protagonizados por Marília. E à medida que o tempo ia passando, nossa dificuldade aumentava, pois quando imaginávamos já ter esgotado todo nosso repertório de elogios, eis que a atriz nos obrigava a criar outros, dada sua infinita capacidade de surpreender e de se reinventar como intérprete. No presente caso, Marília está diante de um enorme desafio, pois é obrigada a cantar mal, quando todos sabemos que canta esplendidamente – aliás, ela só canta efetivamente bem uma única música, no final do espetáculo, a “Ave Maria”, de Gounod, criada em cima do “Prelúdio nº 1”, em dó maior, de Bach. Podemos, portanto, imaginar o esforço e atenção da atriz para desvirtuar seu dotes naturais, mas evitando cair em inadequado exagero.
Mas além de conseguir o que nos parece um prodígio, Marília Pêra exibe um trabalho corporal absolutamente extraordinário, que valoriza não apenas os aspectos cômicos da personagem, mas também suas carências e fragilidades, assim como componentes trágicos, eventualmente sugeridos, mas sempre de forma sutil. Enfim, estamos diante de mais um trabalho desta que consideramos, sem nenhuma hesitação, como uma das melhores atrizes do planeta (já dissemos isso algumas vezes...) e que converte o ato de assisti-la em um privilégio ao qual nenhum espectador minimamente sensível pode se furtar. Assim, desejamos, de todo coração, que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando esta mulher que, através de seu dificílimo ofício, nos possibilita sempre um inesquecível encontro com o teatro e, portanto, com cada um de nós.
Quanto a Eduardo Galvão, o ator parece ter vindo ao mundo com a expressa finalidade de dar vida ao charmoso e cínico pianista, mas ao mesmo tempo possuidor de comovente dose de humanidade, sendo que esta última virtude vai se acentuando ao longo do espetáculo. E o que dizer de Guida Vianna em seus três papéis, completamente díspares e que ela consegue materializar de forma irretocável? Nada além do óbvio: estamos diante de uma atriz capaz de fazer qualquer personagem, em especial aqueles em que o humor predomina – na pele da desbocada e furiosa Verinda, a atriz está tão engraçada que às vezes a montagem tem que ser brevemente interrompida, até que o público pare de rir.
No tocante à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a tradução de Marisa Murray, a adaptação e direção musical de Cláudio Botelho, a inspirada cenografia de Rogério Falcão, os hilariantes figurinos de Kalma Murtinho, a trilha sonora de Marcelo Claret e a expressiva iluminação de Paulo César Medeiros, cabendo ainda mencionar o virtuosismo do pianista Silas Barbosa, que contribuem de forma decisiva para o êxito deste espetáculo simplesmente imperdível.

GLORIOSA – Texto de Peter Quilter. Direção de Charles Möeller. Com Marília Pêra, Eduardo Galvão e Guida Vianna. Teatro Fashion Mall. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.

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Um comentário:

  1. Adorei o seu blog. Tentei segui-lo, mas não consegui. Volto mais tarde. Voltarei sempre!!!
    Abraços.

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